Folha de S. Paulo
Universidade, autonomia
e crise
Livro traça perfis
de Florestan
SAÚDE
Álcool é o principal
vilão
Atrações
marcam dia do doador de sangue hoje
Jornal da Tarde
Dados da OCDE
mostram proteção à elite
Fundação
comemora dia do doador de sangue
Veja (25.11.98)
Trauma é doença
Bichinhos legais
Ao aceitar os termos da autonomia
atual, as universidades aceitaram
arcar com o ônus do pagamento de inativos
HERMANO TAVARES
As
dificuldades financeiras enfrentadas pelas universidades
estaduais paulistas (Unicamp, USP e Unesp) podem
ocasionalmente servir de mote aos que, desejosos de ver retroagir
o processo histórico, propugnam o fim do ensino público gratuito
e, por extensão, tendem a achar que a autonomia universitária
é
uma balela. Não é o caso, certamente, do colunista Luís
Nassif
(Folha, pág. 2-3,10/11), que, ao referir-se acertadamente ao
"outro lado da autonomia" -o do impasse orçamentário atual-,
incorpora, por outro lado, dados imprecisos, que induzem a uma
avaliação errônea do processo e tendem a culpabilizar
este ou
aquele reitor em beneplácito de outros.
É bem verdade que, ao assumir a reitoria da Unicamp, há sete
meses, nós a encontramos com um comprometimento
orçamentário de 94,5% para pagamento de pessoal (não
101%,
como diz Nassif) e um rol de débitos públicos ainda sendo
negociados. É também verdade que, para fazer frente a essa
situação, vimo-nos na contingência de cancelar 1.300
gratificações, reduzir em 40% o volume de horas extras e
cortar
em 70% as despesas do gabinete da reitoria. Tudo isso à margem
das providências de mais largo espectro, que a seu tempo terão
de ser adotadas.
Compreender a fundo essas dificuldades, porém, requer uma volta
à gênese do modelo de autonomia adotado há dez anos
pelas
universidades públicas de São Paulo -as únicas, por
ora, a contar
com tal prerrogativa. Muitos hão de recordar que a autonomia foi
conquistada após curtas e intensas rodadas de negociação
com o
governo do Estado, desdobramentos da longa e traumática greve
que as três universidades deflagraram, no segundo semestre de
1988, por razões salariais. Ao passar às mãos dos
reitores a plena
gestão de seus recursos (inclusive a administração
de salários), o
Estado retirou as universidades do bojo das reivindicações
salariais do setor público e satisfez uma antiga reivindicação
delas.
Do ponto de vista acadêmico, a autonomia é um sucesso. Basta
lançar mão dos indicadores da Unicamp nos últimos
dez anos: o
número de vagas aumentou 44%, cresceu 43% o número de
alunos matriculados, subiu 31% o contingente de professores com
doutoramento, elevou-se em 157% a quantidade de teses e
dissertações concluídas e ampliou-se em 181% o número
de
citações no "Science Citation Index".
Inúmeros outros indicadores positivos poderiam ser alinhados,
como a formidável expansão do atendimento hospitalar, na
esteira
do colapso do sistema público de saúde, responsabilidade
da qual
as universidades não fugiram em nenhum momento. Que fazer
quando os atendimentos no pronto-socorro saltam de 313 mil por
ano para 556 mil e a demanda por cirurgias e transplantes ao ano
passa de 6.241 para 16.645 ocorrências?
Era natural que toda essa expansão -decorrente, em grande parte,
de demandas sociais crescentes- resultasse em pressão
orçamentária. Para fazer frente a essas demandas, a universidade
precisou crescer 22% em termos físicos. A própria titulação
progressiva de seus docentes (88% de doutores hoje, contra 56%
em 1989) teve seu impacto inevitável na folha de salários,
embora
se deva frisar que, nos últimos dez anos, o pagamento de
servidores da ativa manteve-se regularmente na linha de 75% do
orçamento, em contraposição à curva dos inativos,
que vem
crescendo substancialmente desde então -e aí está
o principal
problema.
Ao aceitar os termos da autonomia atual, as universidades
aceitaram também arcar com o ônus do pagamento de seus
inativos sem que houvesse nenhuma transferência adicional de
recursos que garantisse, total ou parcialmente, a constituição
de
um fundo de aposentadoria. Com isso, elas passaram a ser as
únicas instituições públicas do Estado a ter
essa grave e pesada
responsabilidade. Em 1989, com efeito, as aposentadorias
absorviam só 2% do orçamento da Unicamp; hoje, absorvem
15%, e as expectativas para os próximos anos não são
tranquilizadoras.
Tudo isso computado, desenha-se o quadro de um modelo em
que as despesas crescem sempre, na esteira do agigantamento das
demandas sociais, e as receitas permanecem estanques, por força
das recorrentes retrações da atividade econômica -nunca
esquecendo que as universidades paulistas sobrevivem de cotas
fixas sobre a arrecadação do ICMS do Estado, sujeitas às
oscilações do mercado. No passado recente, havia o lenitivo
das
aplicações financeiras; hoje, não mais. De onde resulta
que, na
contramão do que afirma Nassif ao multiplicar por dois o
orçamento da Unicamp, o volume de recursos disponíveis é
hoje
pelo menos 5% menor que o de 1989, em termos reais.
Num momento em que o governo federal trabalha com a
perspectiva de aumentar em duas vezes e meia o número de
estudantes universitários nos próximos dez anos (o que é
justo e
necessário) e, paralelamente, planeja estender às universidades
federais a prerrogativa da autonomia financeira, é salutar que a
experiência das universidades paulistas seja vista de perto e com
carinho -para que seu projeto venha a ser mais completo e
abrangente e para que elas possam fazer frente, sem sobressaltos,
aos desafios futuros. Quanto às universidades públicas de
São
Paulo, o desafio da autonomia situa-se em seu próprio presente
histórico, devendo ser redimensionado a tempo, para que uma
idéia que se revelou brilhante não se mostre, afinal, irrealizável.
Hermano
Tavares, 58, é reitor da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) e presidente do Conselho de Reitores das Universidades
Estaduais Paulistas (Cruesp).
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Livro
traça perfis de Florestan
da Reportagem Local
Será
lançado hoje, às 18h30, o livro "Florestan: Sociologia e
Consciência Social no Brasil", do professor de sociologia da USP
José de Souza Martins.
O livro, da Edusp, tem como fio condutor a história intelectual
de
Florestan Fernandes (1920-1995), um dos teóricos das ciências
sociais mais importantes do Brasil.
Na primeira parte do livro estão artigos em que Martins perfilou
o
intelectual a partir de diversos pontos de vista. Estão nessa parte
textos que analisam características pessoais, da atividade política
(foi um dos fundadores do PT e deputado federal pelo partido) e
da carreira acadêmica (formador de toda uma geração
de
intelectuais brasileiros, incluindo o presidente Fernando Henrique
Cardoso).
A segunda parte é composta por duas entrevistas dadas por
Martins, em que Florestan é um dos temas centrais. (CEM)
²
Livro: Florestan: Sociologia e Consciência Social no Brasil Autor:
José
de Souza Martins Lançamento: Edusp Quando: lançamento hoje,
às
18h30 Onde: Instituto de Estudos Brasileiros (av. Prof. Mello Moraes,
travessa 8, nº 140, tel. 818-3197, Cidade Universitária)
Quanto: R$ 20 (210 págs.)
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SAÚDE
A partir de 99, o Hospital das Clínicas poderá armazenar
tecidos totalmente esterilizados, que devem durar um ano
HC cria 1º banco de pele para queimados
CARLA
CONTE
da Reportagem Local
O
Hospital das Clínicas de São Paulo vai implantar o primeiro
banco de pele esterilizada por irradiação do país,
para tratamento
de queimaduras. Por meio do exposição do material aos raios
gama, é possível reduzir a zero o risco de existência
de doenças
como Aids ou hepatite no tecido doado.
O hospital foi escolhido pela Agência Internacional de Energia
Nuclear Atômica para implantar o setor, que deverá ser aberto
no
início do ano que vem.
Com o novo banco, além da esterilização, os tecidos
também
poderão ser armazenados por mais tempo -por até um ano. O
material ficará guardado em um ambiente a 80C negativos. Com o
atual método, o tecido dura cerca de 20 dias, a uma temperatura
de 4C. Depois desse prazo, o material se degrada.
O banco de pele é fundamental para aumentar a chance de
sobrevida do queimado. "As chances de recuperação chegam
a
aumentar cerca de 50%, se o paciente estiver internado em um
local com condições de tratamento", diz Carlos Fontana, chefe
do
serviço de queimaduras da Divisão de Cirurgia Plástica
do
Hospital das Clínicas.
Quando um paciente sofre queimaduras de terceiro grau (a mais
grave delas), essa região fica exposta a possíveis infecções
e
perda de líquidos. Nesse tipo de queimadura, há perda total
de
epiderme (camada mais externa e fina) e da derme (camada
interna e mais grossa). Com o tecido doado, o organismo fica
menos exposto a complicações.
Ganho
de tempo
O tecido doado é o principal aliado do queimado na sua
recuperação e funciona como um enxerto temporário.
Um
paciente com várias queimaduras graves chega a precisar de
tecido de quatro a seis doadores.
As queimaduras de primeiro e segundo graus se recuperam. A
pele dessa região se refaz naturalmente, sem medicamentos, e, em
vários casos, ela servirá de base para material de enxerto.
Já na região onde houve queimadura de terceiro grau, a pele
não
se recompõe sozinha. A recuperação do paciente vai
depender de
enxerto de pele retirada da própria pessoa.
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Álcool
é o principal vilão
da Reportagem Local
As
principais causas de queimaduras de terceiro grau são
acidentes com álcool e líquidos quentes. Em seguida, estão
as
queimaduras provocadas por choque em corrente elétrica.
Em quarto e quinto lugar, estão acidentes com produtos químicos,
ocorridos geralmente em ambientes de trabalho industrial, e com
pólvora, principalmente de fogos de artifício.
Segundo o médico Carlos Fontana, cerca de 70% dos pacientes
internados no HC chegam com queimadura de terceiro grau.
"80% deles se queimaram em acidentes com álcool", diz.
Só no ano passado, São Paulo internou 5.438 vítimas
de
queimaduras, em hospitais públicos ou conveniados com o SUS
(Sistema Único de Saúde). O governo gastou no tratamento
mais
de R$ 3 milhões. No país todo, foram internados em 97 cerca
de
33.700 vítimas, que consumiram R$ 17 milhões do SUS. (CC)
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Atrações
marcam dia do doador de sangue hoje
da Reportagem Local
A
Fundação Pró-Sangue e hospitais públicos e
privados
promovem atividades hoje para comemorar o Dia Nacional do
Doador Voluntário de Sangue.
A meta da Pró-Sangue é receber mais de 1.409 doações,
recorde
do ano passado. Normalmente, cerca de 700 pessoas doam
sangue diariamente -cada doação gera uma bolsa de 450 ml
de
sangue.
Os voluntários vão ganhar um CD e um pin (tipo de broche)
com
o tipo sanguíneo do doador.
Ainda para atrair voluntários, integrantes dos grupos musicais
Katinguelê e Karametade vão doar sangue hoje. A intenção
é que
os fãs desses conjuntos sigam o exemplo de seus ídolos.
Outros hospitais, como a Beneficência Portuguesa e o Sírio
Libanês, também promovem atividades para atrair doadores.
Devem comparecer à Beneficência, na Bela Vista (região
central
de SP), os artistas Alexandre Pires e Carla Perez. No Sírio
Libanês (região central de SP), haverá um recital de
música
erudita à tarde.
Dados da OCDE mostram proteção à elite
Os indicadores educacionais divulgados pela Organização para
a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), anteontem, mostram que a elite
brasileira só pensa em seus interesses. A afirmação
é do ex-ministro da
Educação, José Goldemberg: “Os números indicam
que o ensino básico é de
3.º mundo, enquanto o superior, que atende aos mais ricos, é
de 1.º.”
Segundo a OCDE, os gastos com universitários brasileiros superam
os dos
países desenvolvidos, o que não ocorre na educação
fundamental. “O governo
se esforça para mudar, mas é preciso enfrentar o corporativismo.”
Para Romualdo Portela de Oliveira, professor de Política Educacional
da USP,
apesar de o aluno brasileiro ter uma carga horária baixa (667 horas
por ano,
enquanto a média da OCDE é de 791 horas), não adianta
apenas deixá-lo na
escola por mais tempo: “É preciso também oferecer uma proposta
pedagógica
adequada.”
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Fundação
comemora dia do doador de sangue
A Fundação Pró-Sangue promove hoje, Dia do Doador
de Sangue, eventos
para incentivar as doações. Quem comparecer ao posto da entidade
no
Instituto Central do Hospital das Clínicas ganhará um CD
e poderá saber o tipo
de sangue. Informações sobre doações podem
ser obtidas pelo telefone
0800-550300.
Um mal que é a segunda causa de morte no Brasil
não tem merecido senão o descaso e a negligência
Roberto Pompeu de Toledo
"A pior forma de
tratar o trauma é
rotulá-lo de acidente"
Foto: Egberto Nogueira
Será realizada entre esta segunda-feira, 23, e o sábado,
28, a Semana
Nacional do Trauma. Trata-se de iniciativa de duas entidades médicas
—
Sociedade Brasileira de Atendimento Integrado ao Traumatizado e
Colégio Brasileiro de Cirurgiões — com o objetivo de chamar
a atenção
para o vasto problema chamado trauma e para suas soluções.
Trauma,
nesse contexto, é qualquer dano à saúde causado por
fatores externos —
batida de automóvel, agressão, tiro, queda... No Brasil,
120.000 pessoas
morrem de trauma por ano.
Um dos articuladores da Semana do Trauma é o médico paulista
Dario
Birolini, titular da disciplina de cirurgia geral e do trauma da Faculdade
de
Medicina da Universidade de São Paulo e chefe da divisão
de clínica
cirúrgica do Hospital das Clínicas da mesma universidade.
O doutor
Birolini, de 61 anos, um dos mais respeitados profissionais do país,
aprimorou sua visão do problema em estágios nos Estados Unidos,
nos
anos 70, e desde então lidera iniciativas que tentam engajar na
questão a
comunidade médica, as autoridades e a sociedade.
Veja — O senhor diz que trauma é doença. Por quê?
Birolini — Essa é uma mudança de conceito que surgiu nos
anos 60 nos
Estados Unidos. De repente, percebeu-se que, enquanto se investia
pesadamente na pesquisa ou tratamento do câncer ou das doenças
cardiovasculares, as estatísticas sobre causas de morte, em qualquer
país,
indicavam que o trauma vinha em segundo ou no máximo terceiro lugar.
O
trauma não só é uma doença, mas a grande doença
negligenciada de
nosso tempo.
Veja — Antes de prosseguir, o que se deve entender por trauma?
Birolini — Trauma é tudo que é provocado pelo que tecnicamente
se
chama de causa externa: tiro, facada, atropelamento, queda, acidente de
trabalho... No Brasil, nos anos 60, as causas externas ocupavam o
terceiro lugar entre as causas de morte, depois das moléstias
cardiovasculares e do câncer. Agora estão em segundo, depois
das
doenças cardiovasculares e antes do câncer. Provocam 120.000
mortes
ao ano.
Veja — Qual a vantagem de conceituar o trauma como doença?
Birolini — É afastar a idéia de acidente. A pior forma de
abordar a morte
por causa externa, ou qualquer outro agravo à saúde, é
rotulá-la de
acidente. Aceita a idéia de acidente, segue-se que não há
o que fazer. Há
muito o que fazer, a começar pela prevenção. Estou
chovendo no
molhado quando digo que os chamados "acidentes" automobilísticos
ocorrem por carros malconservados, excesso de velocidade, estradas
ruins, motoristas alcoolizados, falta de cinto de segurança... Todas
causas
passíveis de prevenção. Da mesma forma, acidentes,
entre aspas, de
trabalho, na imensa maioria das vezes, são evitáveis, e igualmente
os
"acidentes" domésticos.
Veja — Como fazer para evitá-los?
Birolini — Há muitas maneiras. A prevenção em primeiro
lugar. Ou
investindo na melhora das diversas fases de atendimento ao doente de
trauma, desde o atendimento pré-hospitalar, aquele que as equipes
de
socorro prestam na rua, até a reabilitação, por meio
de fisioterapia,
passando pelo atendimento de emergência num pronto-socorro. Nós
temos propugnado — eu e o grupo de que faço parte, dos médicos
do
Colégio Brasileiro de Cirurgiões e da Sociedade Brasileira
de
Atendimento Integrado ao Traumatizado — por um sistema integrado de
trauma. Isso significa atenção igual a essas diversas fases
e a coordenação
entre elas.
Veja — Começando pela prevenção, o que deve ser feito?
Birolini — Infelizmente, o trauma é uma doença que tem predileção
por
determinados grupos etários, sociais ou culturais cujo comportamento
é
difícil de modificar. Exemplo: acidente, entre aspas, de automóvel.
Quem
tem acidente de automóvel não é o senhor de 50 anos.
É o jovem de 20,
que corre, bebe, não usa cinto de segurança... Mudar o comportamento
de pessoas dessa idade é difícil. Outra doença-trauma
com origem em
grupo definido é a violência interpessoal: a agressão,
o homicídio. Isso
ocorre mais entre pessoas com graves problemas econômicos, que vivem
em periferias, não têm trabalho, usam drogas, assaltam e roubam.
É difícil
prevenir o trauma, nesse caso, porque ele é o último capítulo
de uma
novela muito longa.
Veja — O novo código de trânsito não é útil
para prevenir os casos
provocados por automóvel?
Birolini — O código é ótimo, mas o que tem acontecido?
Pegue-se uma
estrada, numa hora de trânsito intenso. No código está
escrito que trafegar
pelo acostamento é infração gravíssima, multa
de mais de 500 reais, 7
pontos no prontuário do motorista. E daí? Todo mundo continua
a trafegar
pelo acostamento. E os infratores se beneficiam, porque chegam primeiro.
Não adianta ter código se não é observado,
se não há fiscalização.
Veja — O que mata mais — o acidente de automóvel ou a violência
interpessoal?
Birolini — A violência interpessoal. Em 1981, no Brasil, ainda eram
os
chamados "acidentes" automobilísticos — eles eram responsáveis
por
27% das mortes por trauma, contra 21% de homicídios. Em 1995, os
homicídios lideravam com 32% do total, contra 28% de acidentes
automobilísticos. Na cidade de São Paulo, os homicídios
correspondem a
60% das mortes por trauma.
Veja — Qual a influência do álcool nas mortes por trauma?
Birolini — Enorme. Não é à toa que os eventos que
as ocasionam
ocorrem principalmente nos fins de semana. É quando entra em cena
o
grande fator modificador do comportamento que se chama álcool. Se
eu
tivesse de fazer uma escolha entre álcool e fumo para uma campanha,
deixava o fumo em paz e ficava com o álcool. O fumo mata a pessoa
que
está fumando. É uma opção do indivíduo:
quero morrer de câncer do
pulmão. O álcool mata os outros.
Veja — Não estamos falando, na verdade, de uma doença da
sociedade?
Birolini — Exatamente.
Veja — Se o trauma é uma doença da sociedade, a cura não
é de
responsabilidade dos administradores e políticos? Que podem os
médicos fazer?
Birolini — Nosso papel é limitado, mas nem por isso devemos cruzar
os
braços. Fazemos, os médicos do nosso grupo, o que está
ao nosso
alcance. Basicamente, estamos empenhados em duas coisas. Uma é a
realização da Semana Nacional de Trauma, em que a intenção
é alertar a
população e as autoridades para o problema. Outra é
a promoção de
cursos de aprimoramento de médicos para o atendimento a doentes
de
trauma. São cursos estruturados pela maior sociedade de médicos
do
mundo, o Colégio Americano de Cirurgiões, que reúne
60.000 membros,
e que estamos aplicando no Brasil desde o começo da década.
Veja — Como são esses cursos?
Birolini — São maratonas de imersão total no problema, de
dois dias de
duração, com grupos de dezesseis médicos. Usam-se
manequins e
simulam-se situações. Sete mil médicos já os
fizeram, de Boa Vista a
Porto Alegre. Hoje esses cursos são aplicados em trinta ou quarenta
países, com o aval do Colégio Americano de Cirurgiões.
O Brasil está em
terceiro lugar, depois dos próprios Estados Unidos e do México,
no
número de médicos que os freqüentaram.
Veja — No que se refere ao atendimento ao doente do trauma,
onde estão as falhas?
Birolini — Há falhas em todas as etapas. Começando pelo atendimento
pré-hospitalar, e tomando como exemplo o caso de São Paulo
há o fato
de o atendimento ser feito pelo Corpo de Bombeiros, que pertence à
Secretaria da Segurança Pública, e não haver integração
entre a Secretaria
da Segurança e a Secretaria da Saúde. Antes, os bombeiros
eram
treinados nos primeiros socorros por médicos da Secretaria da Saúde.
Não são mais. Quem os treina são oficiais do próprio
Corpo de
Bombeiros, muito bem intencionados, sem dúvida — mas que não
são
médicos. Não têm a formação necessária
para dar esse tipo de instrução.
Além disso, não são todas as atitudes médicas
que bombeiro pode tomar.
Bombeiro não pode dar soro nem intubar doente. Em outros aspectos,
o
serviço é satisfatório. Por exemplo, no tempo gasto
entre o chamado e o
atendimento.
Veja — Quanto é?
Birolini — Dez a quinze minutos, em São Paulo. O ideal seria um
pouco
menos de dez, mas não está mal. Problema maior é o
que vem em
seguida. Não adianta resgatar uma pessoa em dez minutos e depois
enfrentar uma demora de duas horas no hospital para fazer uma chapa,
uma tomografia, para levar o doente ao centro cirúrgico, fazer exame
de
sangue...
Veja — Por que demora tanto?
Birolini — Porque, dentro dos serviços de emergência, procura-se
resolver todos os problemas de assistência médica do país.
Se você for
agora ao Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, em São
Paulo,
verificará que 20% ou 30% dos casos ali não são de
emergência. São
doentes que estão lá porque não têm para onde
ir — e consomem tempo,
sala, gente, remédios. Que fazer? Não sei. Tentei, inúmeras
vezes, alertar
as autoridades para isso. Todo mundo conhece o problema, meu Deus do
céu! — mas para resolvê-lo seria preciso investir mais em
prevenção, em
atendimento primário...
Veja — Pronto-socorro deveria tratar só de trauma?
Birolini — Não, pronto-socorro é para infarto, acidente
vascular-cerebral, apendicite aguda, cólica de rim... Agora, não
é para
insuficiência arterial crônica, acidente vascular-cerebral
ocorrido uma
semana antes, insuficiência urinária... E ainda há
o problema clássico de,
ministrado o atendimento inicial, não haver onde continuá-lo.
Tomemos o
caso de um trauma muito comum — lesão de cabeça. Dá-se
o
atendimento de emergência. É preciso depois continuar o tratamento,
mas
não se tem para onde mandar o paciente. Ele então fica no
pronto-socorro.
Veja — Os médicos brasileiros estão qualificados para tratar
dos
pacientes de trauma?
Birolini — Nem sempre. Por que promovemos cursos de aprimoramento
de médicos? Porque chegamos à conclusão, que não
é só nossa, é do
mundo inteiro, de que um dos grandes agentes causadores de seqüelas
e
de mortes é a ação do médico despreparado.
Veja — O senhor poderia citar exemplos de problemas surgidos
pelo despreparo do médico?
Birolini — Há muitos. Imagine um doente que é atropelado
e tem fratura
do joelho. Aparentemente, é uma lesão banal. Só que,
atrás do joelho,
passam artérias importantes e, nessa fratura do joelho, uma artéria
dessas
se machuca. Caso se faça o diagnóstico correto, liquida-se
o problema
com uma cirurgia relativamente pequena. Mas, se o médico só
identifica a
fratura do joelho, enfaixa e diz ao paciente para voltar no dia seguinte,
o
que ocorre é que no dia seguinte a perna dele estará preta
e precisará ser
amputada. Isso pode parecer um erro grosseiro, mas aconteceu
recentemente com um paciente que recebemos no Hospital das Clínicas.
Outro caso comum é o de trauma cranioencefálico mal atendido.
Uma
pessoa recebe uma pancada na cabeça. O cérebro incha. Com
isso,
aumenta tanto a pressão dentro da caixa craniana que o sangue pára
de
circular, e a pessoa morre. Um bom atendimento inicial evita essa
seqüência de complicações. Entretanto, o número
de pessoas que nos
chegam já com lesões cerebrais irreversíveis é
altíssimo. Quando não
morre, o paciente fica com uma seqüela neurológica definitiva,
com um
custo, para a família e a sociedade, incalculável, em sofrimento
e dinheiro.
Veja — Por que os médicos são despreparados?
Birolini — Nós formamos 8.000 médicos por ano, nas cerca
de 100
faculdades brasileiras de medicina. Desses, apenas um porcentual
relativamente pequeno, talvez 50%, faz residência médica.
Quando se
termina o curso, sabe-se medicina. Mas só quando se faz residência
aprende-se a ser médico, apesar de, segundo a legislação,
poder, com o
diploma na mão, realizar até neurocirurgia. No que diz respeito
ao
atendimento de trauma, existem duas ou três escolas médicas
no país que
oferecem um ensino especializado. As outras ou não fornecem ou
fornecem só alguma noção, como um mero capítulo
do curso de cirurgia,
ou de ortopedia, ou de neurocirurgia. Freqüentemente, quem dá
aula são
médicos que também não tiveram formação
específica. Então,
perpetuam-se erros e omissões. É chegada a hora de fazer
uma reflexão e
começar a investir maciçamente, não apenas em recursos
de saúde, mas
na formação de médicos. Aí os custos da saúde
baixariam.
Veja — Atender traumatizados também exige equipamentos
específicos. Nós os temos?
Birolini — Está aí outro problema. O médico, ainda
que preparado,
acaba indo trabalhar num serviço onde lhe faltarão condições
mínimas de
trabalho. Vou dar um exemplo. Hoje não se admite mais tratar trauma
cranioencefálico sem um estudo tomográfico. A tomografia
mudou da água
para o vinho o tratamento do trauma. Entretanto, existem vários
serviços
de emergência do país onde não há tomografia.
Como se faz? Trata-se o
paciente como há trinta ou cinqüenta anos. Em nossos cursos,
uma das
coisas que ensinamos ao médico é exigir condições
de trabalho.
Veja — Mas os equipamentos não são muito caros?
Birolini — O que exigimos é o bê-á-bá. Não
estamos propondo
medicina altamente sofisticada, mas há coisas sem as quais não
dá para
trabalhar. O que ocorre é que, além do despreparo, com freqüência
o
médico acaba atendendo num quadro de desespero.
Veja — Como seria o "sistema integrado de trauma" que o senhor
defende?
Birolini — É algo que já existe há muito em países
de Primeiro Mundo.
Em primeiro lugar, faz-se um investimento maciço na prevenção.
Isso quer
dizer educação e legislação rígida de
trânsito, de porte de armas, de uso
de drogas e álcool. O atendimento pré-hospitalar deve ser
feito de forma a
que em poucos minutos haja no local alguém qualificado para prestá-lo.
Esse alguém pode ou não ser um médico — pode ser paramédico,
como
nos Estados Unidos, e pode ser médico ou enfermeiro, como na França.
Eles ministram ao doente medidas salvadoras de emergência e o
transportam para um local onde terá tratamento definitivo. No caminho,
já
informam que estão conduzindo um doente em tais e tais condições.
Então, quando o doente chega, haverá um grupo de especialistas
reunidos
— se for o caso de trauma cranioencefálico, um neurocirurgião,
um
anestesista, uma enfermeira com soro... Para dar atendimento adequado,
precisa-se ainda de ambientes adequados. Não dá para cuidar
do
traumatizado na mesma sala onde há um paciente com pneumonia. Deve
haver uma sala de operação disponível, recursos de
diagnóstico mínimos,
que são hoje em dia tomografia, ultra-som e raio X e, depois do
atendimento de emergência, um lugar para o paciente ficar — em geral,
uma unidade de terapia intensiva. Essa seqüência é fundamental.
Depois
entra um último componente, que é a reabilitação
pela fisioterapia. Então,
quando se fala em atendimento integrado, fala-se em prevenção,
atendimento pré-hospitalar, atendimento hospitalar, terapia intensiva
e
reabilitação. Essa é a seqüência. Falhamos
em todas e onde mais falhamos
é no atendimento hospitalar.
Veja — Eliminadas ou amenizadas as falhas nas diversas etapas,
dá para calcular em quanto poderia ser diminuído o número
de
óbitos?
Birolini — Em vários países já se fez esse cálculo.
Um estudo clássico,
realizado na Califórnia nos anos 70, mostra que num determinado
lugar
onde se implantou um sistema integrado de trauma as mortes caíram
25%.
Em outras partes, já se chegou a uma diminuição de
até 50%. As "mortes
evitáveis", como chamamos, passam a ser evitadas. No Brasil, apesar
de
evitáveis, elas continuam ocorrendo.
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Pesquisa derruba o mito de que os personagens
de desenhos animados estimulam a violência
Crianças de todo o mundo já viram o filme A Auto-Estrada
Fracassada,
exibido na televisão desde 1963. O roteiro conta a história
de Homero,
um funcionário de uma empresa de engenharia que tenta derrubar uma
árvore para, no lugar dela, construir uma estrada. Mas um morador
da
área se recusa a sair e submete o sujeito a violências indizíveis.
Em sete
minutos, Homero leva uma surra de cassetete, é jogado em uma betoneira,
explode com uma bomba que lhe cai nas calças e é atropelado
por um
trator. Filme de terror? Não, é apenas mais um episódio
do desenho
animado Picapau, criado em 1940 pelo americano Walter Lantz. De uns
tempos para cá, o desenho tornou-se um dos milhares de exemplos
usados pelo esquadrão dos politicamente corretos para mostrar como
a
criançada está exposta à violência televisiva.
As gerações que cresceram
gargalhando a cada vez que o operário se estrepa ao tentar derrubar
o
Picapau da árvore, no entanto, têm um consolo. Um estudo feito
pelo
Laboratório de Pesquisa sobre Infância, Imaginário
e Comunicação, da
Universidade de São Paulo, USP, com 1.020 crianças mostra
que colocar
os cartoons no balaio das más influências é uma asneira
sem tamanho.
"Uma criança normal, que não sofre de distúrbio cerebral,
jamais transfere
a violência do faz-de-conta para o cotidiano", conclui Elza Dias
Pacheco,
coordenadora da pesquisa e doutora em psicologia social.
O conto da Gata Borralheira, escrito no século XVII pelo francês
Charles Perrault, mostra uma madrasta que obriga as filhas a cortar os
dedos dos pés para calçar um sapatinho de cristal. A primeira
versão de
Chapeuzinho Vermelho trazia o Lobo Mau mastigando uma menina e sua
avó. Nossos tataravós não se transformaram em matadores
depois de
ouvir as histórias. As crianças de hoje também não
jogarão dinamites nos
desafetos, como faz o Pernalonga. Como nos contos, a linguagem da
maioria dos desenhos é propositadamente exagerada e deixa claro
que se
está falando de um mundo irreal. As cores são berrantes,
ninguém morre,
as músicas ridicularizam as cenas de violência e garantem
o tom de
diversão.
A pesquisa tem outra conclusão importante: a meninada prefere os
desenhos antigos. No ranking dos dez mais lembrados pelas crianças
entrevistadas, apenas três têm menos de uma década.
O Picapau está em
primeiro lugar. Pateta, Tom e Jerry e Pernalonga vêm em seguida.
"Gosto
do Tom e Jerry e, principalmente, do Mickey. Tenho travesseiros, copos
e
bicho de pelúcia dele", conta André Sollito, 8 anos. A doutora
Elza ficou
intrigada com a mania retrô e tentou explicar por que os novos desenhos,
liderados pela safra japonesa, não conseguem fixar-se no gosto infantil.
Descobriu que, apesar de os personagens dos desenhos japoneses sempre
se apresentarem com os olhos muito grandes e redondos, à maneira
ocidental, eles são ultranipônicos num traço de comportamento
que as
crianças — mesmo inconscientemente — percebem. Eles sempre andam
em turmas gigantes. É assim, por exemplo, com os Cavaleiros do
Zodíaco e os Power Rangers. São tantos personagens que as
crianças
têm dificuldade para identificar um herói. Há ainda
outro ponto. Os novos
desenhos pecam pelo excesso de realidade. Filmes como Yu Yu Hakusho
— em que o herói embrenha-se em crises existenciais e depois soca
os
inimigos até que jorrem litros de sangue — não convencem.
"Quando vejo
os super-heróis, fico sério na frente da TV. Mas quando assisto
ao
Picapau não agüento de tanto rir. Por isso ele é mais
legal", diz o paulista
Felipe Vannucci Maneschi, 9 anos, que acorda todos os sábados às
7 da
manhã para ver as estripulias do personagem.
Os desenhos de outrora também levam vantagem ao mostrar bichos —
quase sempre travestidos de gente — como heróis. Em vez de atormentar
as crianças com dilemas éticos, os bichinhos garantem o que
qualquer
criança, com toda a razão, quer: diversão. "O Pernalonga
é o maior
barato. Ele vive se escondendo para enganar os outros. Eu também
brinco
de esconder dentro de casa e gosto de imitá-lo", conta Lucas Bobadilla,
8
anos. A pesquisa da USP é a redenção da geração
TV. É também um
alívio em meio à febre politicamente correta que produziu
curiosidades
como uma recente pesquisa divulgada pela ONU. Nela foram computados
1.432 crimes cometidos em uma semana de exibição de desenhos
animados em emissoras brasileiras. Boa parte deles era contra o
patrimônio. Devem estar falando de quando o Frajola amassa a gaiola
do
Piu-Piu.
Rodrigo Cardoso