São Paulo, 
educação
09/02/2007
Docência leiga na Amazônia é vista como descontinuidade pela pedagogia moderna
Pesquisa do IP buscou entender como se dá a prática pedagógica de professores amazônidas que, em condições adversas e com autoridade, ingressaram no magistério na condição de leigos
Vanessa
Portes

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Segundo a pesquisadora, "a docência leiga subverte um princípio fundamental da pedagogia moderna, segundo o qual os saberes socialmente válidos são aqueles transmitidos pelos sistemas escolares, por professores que passaram por um rigoroso processo de formação escolar para assumir profissionalmente a tarefa educativa e ocupar o lugar de quem sabe".
No Instituto de Psicologia (IP) da USP, uma pesquisa com professores amazônidas, que atuaram como leigos em escolas ribeirinhas e da floresta, revela que tornar-se professor é constituir, repetir, (re)produzir, de modo singular, uma prática discursiva institucional. "É essa própria prática que autoriza o professor, inclusive o leigo, a ocupar o lugar de quem ensina", aponta a pedagoga Cláudia Murta, autora de uma tese de doutorado sobre o tema.

Segundo a pesquisadora, a docência leiga é uma descontinuidade, uma fratura no discurso da pedagogia moderna, apesar de ter se mostrado como parte integrante desse mesmo discurso.

Os professores amazônidas envolvidos no estudo ingressaram no magistério na condição de leigos e muitos não chegaram a completar as quatro primeiras séries do ensino fundamental. Outros não possuíam sequer o nível de escolaridade no qual lecionavam. Mesmo assim, e em condições adversas, assumiam a função docente com autoridade, ministrando aulas em escolas palafitas, à beira do rio, ou em ranchos de palha, na floresta, com turmas multisseriadas.

Como alguém se torna professor à margem do sistema oficial de formação e credenciamento pedagógico, e que dispositivos autorizam e legitimam um professor leigo a ocupar o lugar de quem ensina? Na tentativa de elucidar questões como estas, a pedagoga selecionou para análise 16 redações, entre 96 produzidas por professores que participavam de um Programa de Formação de Professores. "As 16 redações escolhidas foram produzidas por professores que ingressaram no magistério tendo como nível de escolaridade o ensino fundamental incompleto", conta Cláudia, lembrando que o tema da redação era "Como me tornei professor".

O Programa foi fruto de um convênio celebrado em 1999 entre a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) do Pará, a Universidade Federal do Pará (UFPa), a Universidade Estadual do Pará (UEPa) e a Universidade da Amazônia (Unama). O Projeto objetivou formar, em nível superior, professores leigos do ensino fundamental e médio em exercício nas redes municipal e estadual de ensino, em diversos municípios no Estado do Pará, como Tucumã, Rio Maria, São Felix do Xingu e Cumaru do Norte.

Sujeito e instituição
Usando a estratégia da análise do discurso, Cláudia observou as singularidades nas redações. "Na recuperação de sua trajetória profissional, os professores estabeleciam significações com a sua história pessoal, com as figuras de professores exemplares que marcaram as suas vidas, com a instituição escolar ou com a pedagogia moderna - prática discursiva dominante a partir da qual todas essas relações se tornaram possíveis nas redações", observa.

A análise das redações procurou articular duas dimensões: o singular e o institucional. "As singularidades que se mostraram nas redações foram sendo fabricadas a partir do lugar do qual esses sujeitos estavam falando, o lugar de professor. Trata-se, portanto, de uma singularidade vinculada, de forma muito particular, ao contexto institucional".

Cláudia também analisou as regularidades discursivas nas redações. Essas foram reunidas em nove grandes temas. Entre esses, estão o percurso de escolarização narrado desde a infância, as motivações que levaram esses professores a ingressarem no magistério (dom, sina, sonho, acaso, fatalidade), a idéia de progresso e futuro, entre outros. "Pude ressaltar como os professores, em suas produções discursivas, repetem e legitimam, em suas rotinas pedagógicas, o discurso da pedagogia moderna, por efeitos de reconhecimento e desconhecimento".

Segundo a pesquisadora, "a docência leiga subverte um princípio fundamental da pedagogia moderna, segundo o qual os saberes socialmente válidos são aqueles transmitidos pelos sistemas escolares, por professores que passaram por um rigoroso processo de formação escolar para assumir profissionalmente a tarefa educativa e ocupar o lugar de quem sabe". Entretanto, ela concluiu que, mesmo entendida como uma descontinuidade, a docência leiga é um acontecimento que se dá dentro da rede discursiva da pedagogia moderna, faz parte dela, já que é um dispositivo instaurado para dar conta das demandas da Modernidade, que exige a universalização da educação.











· vínculos:
Instituto de Psicologia

· mais informações:
(0XX11) 3672 6501 com Cláudia Murta. Pesquisa orientada por Maria Helena Souza Patto

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