São Paulo, 
sociedade
18/12/2002
Discurso dominante contra MST mobiliza
sentidos legitimados há quase 500 anos
Pesquisa da FFLCRP buscou entender o discurso sobre o MST, relacionando-o a episódios históricos como os quilombos, Canudos, o Contestado e Ligas Camponesas
Fábio de Castro, especial para a Agência USP

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"O MST recupera, em circunstâncias inéditas, episódios importantes da história do País. O litígio discursivo existe desde que os camponeses começaram a lutar pela terra."
O discurso sobre o MST na imprensa e nos setores dominantes da sociedade busca deslegitimar a luta pela terra, além de criminalizar e "satanizar" o movimento. Na tese de doutorado O discurso do conflito materializado no MST: a ferida aberta da nação, a pesquisadora Lucília Maria de Sousa Romão buscou entender o discurso sobre o Movimento, relacionando-o a episódios históricos como os quilombos, Canudos, o Contestado e Ligas Camponesas demonstrando que o mesmo funcionamento discursivo vem ocorrendo de maneira similar nos últimos 500 anos. O estudo foi apresentado no Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCRP) de Ribeirão Preto da USP.

O texto de 320 páginas, que demorou três anos e meio para ser concluído, foi fruto de um trabalho de campo, uma extensa pesquisa em recortes de jornal e em mais de duzentos livros. "Interpretando o funcionamento discursivo da mídia sobre o MST e do movimento sobre si mesmo, notei que pareciam tratar de dois campos diferentes. Este foi o ponto de partida do trabalho", conta Lucília.

Trabalhando com uma metodologia de tradição francesa de análise de discurso, a pesquisadora, formada em Letras, dividiu os veículos pesquisados em dois tipos: os de "formação discursiva dominante", que para ela detêm o aparato jurídico que lhes dá sustentação e são representados pela grande imprensa; e os de "formação discursiva dominada", em que ela inclui o próprio jornal do MST e a revista Caros Amigos, que se instalam na região de sentido oposta às visões estabelecidas e procuram dar legitimidade à luta política e à legalidade do movimento da luta pela terra.

"A partir da década de 80, o MST representou uma ruptura com o discurso dominante que garantia a manutenção da terra nas mãos de alguns. Hoje, o movimento tem um estatuto simbólico e discursivo muito forte", afirma a professora.

Após uma fase prévia de análise de textos, a pesquisadora foi a campo entrevistar lideranças do MST. O trabalho de campo foi feito em Matão (SP), no acampamento Dom Hélder Câmara local com mais de 1.000 famílias. Concluída a primeira etapa, Lucília percebeu que o movimento se inseria numa luta histórica ancestral. "O MST recupera, em circunstâncias inéditas, episódios importantes da história do País. O litígio discursivo existe desde que os camponeses começaram a lutar pela terra."

Registros do passado
Segundo a pesquisadora, o tratamento dado ao movimento pelo discurso dominante não difere essencialmente daquele dirigido aos negros dos quilombos ou aos rebeldes de Canudos, aos caboclos do Contestado e às lideranças das Ligas. "Vimos isso quando o presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o MST não passava de meia dúzia gatos pingados, ou quando uma revista (des)qualificou o movimento, chamando-o de "quadrilha". Achamos exatamente os mesmos termos e o mesmo funcionamento discursivo nos recortes das lutas do passado", afirma.

De acordo com o estudo, a diferença do MST em relação aos seus predecessores, é que o movimento é mais organizado, mais numeroso, mais descentralizado (portanto menos regional) e seu discurso tem mais visibilidade. "Mas o discurso de luta pela terra sempre existiu e sempre foi negado pelo sentido oficial."

Outra diferença, segundo Lucília, é que todos os demais movimentos sofreram não apenas ataques e acusações no âmbito do discurso, mas foram literalmente exterminados. "Além da manobra retórica, sempre existiu um massacre no plano real. Os quilombos eram dizimados; no Contestado, bombardearam os núcleos caboclos com avião italiano; em Canudos, todos foram degolados, os líderes das Ligas foram presos. Sempre houve uma reação bélica, militar, coercitiva, muito mais efetiva no passado", diz. "É verdade que aconteceram massacres como Eldorado dos Carajás, Corumbiara e outros, mas trata-se de outra escala."

Na visão da pesquisadora, a "satanização" promovida pelo discurso oficial vigente começou com o movimento dos quilombos. "Fui buscar nas canções dos negros o desejo da terra e, nos registros de cartas dos fazendeiros, a mesma perspectiva, quando já eram utilizados os termos 'baderneiros' e 'quadrilha' para denominar os cativos que fugiam em busca da liberdade."

A pesquisa também analisou o levante dos camponeses suíços de Ibicaba, no final do século XIX. "Foi o primeiro movimento em que os camponeses se organizavam em torno de um estatuto, e também o primeiro registro documentado da luta pela terra". Lucília teve acesso a abaixo-assinados, cartas e atas de reunião do movimento. "Tem-se ali a formação discursiva dominada, que foi violentada e desumanizada em sua condição de miséria e busca de um lugar na legalidade."

Do outro lado, foram pesquisados discursos, cartas e documentos da fazenda do senador César Vergueiro, que mostravam o sentido do direito sagrado da terra, caracterizando o discurso dominante. No conflito de Canudos, segundo Lucília, acontece o mesmo confronto. "Não pude analisar com profundidade os textos escritos por Antônio Conselheiro, mas consegui valiosos registros de depoimentos, cartas e recortes de jornal, além da contribuição de autores como Euclydes da Cunha e Manoel Benício."





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