"O MST recupera, em circunstâncias inéditas,
episódios importantes da história do País. O litígio discursivo existe
desde que os camponeses começaram a lutar pela terra." |
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discurso sobre o MST na imprensa e nos setores dominantes da sociedade
busca deslegitimar a luta pela terra, além de criminalizar e "satanizar"
o movimento. Na tese de doutorado O discurso do conflito materializado
no MST: a ferida aberta da nação, a pesquisadora Lucília Maria
de Sousa Romão buscou entender o discurso sobre o Movimento, relacionando-o
a episódios históricos como os quilombos, Canudos, o Contestado e
Ligas Camponesas demonstrando que o mesmo funcionamento discursivo
vem ocorrendo de maneira similar nos últimos 500 anos. O estudo foi
apresentado no Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCRP) de Ribeirão Preto da USP.
O texto de 320 páginas, que demorou três anos e meio para ser concluído,
foi fruto de um trabalho de campo, uma extensa pesquisa em recortes
de jornal e em mais de duzentos livros. "Interpretando o funcionamento
discursivo da mídia sobre o MST e do movimento sobre si mesmo, notei
que pareciam tratar de dois campos diferentes. Este foi o ponto de
partida do trabalho", conta Lucília.
Trabalhando com uma metodologia de tradição francesa de análise de
discurso, a pesquisadora, formada em Letras, dividiu os veículos pesquisados
em dois tipos: os de "formação discursiva dominante", que para ela
detêm o aparato jurídico que lhes dá sustentação e são representados
pela grande imprensa; e os de "formação discursiva dominada", em que
ela inclui o próprio jornal do MST e a revista Caros Amigos, que se
instalam na região de sentido oposta às visões estabelecidas e procuram
dar legitimidade à luta política e à legalidade do movimento da luta
pela terra.
"A partir da década de 80, o MST representou uma ruptura com o discurso
dominante que garantia a manutenção da terra nas mãos de alguns. Hoje,
o movimento tem um estatuto simbólico e discursivo muito forte", afirma
a professora.
Após uma fase prévia de análise de textos, a pesquisadora foi a campo
entrevistar lideranças do MST. O trabalho de campo foi feito em Matão
(SP), no acampamento Dom Hélder Câmara local com mais de 1.000 famílias.
Concluída a primeira etapa, Lucília percebeu que o movimento se inseria
numa luta histórica ancestral. "O MST recupera, em circunstâncias
inéditas, episódios importantes da história do País. O litígio discursivo
existe desde que os camponeses começaram a lutar pela terra."
Registros do passado
Segundo a pesquisadora, o tratamento dado ao movimento pelo discurso
dominante não difere essencialmente daquele dirigido aos negros dos
quilombos ou aos rebeldes de Canudos, aos caboclos do Contestado e
às lideranças das Ligas. "Vimos isso quando o presidente Fernando
Henrique Cardoso disse que o MST não passava de meia dúzia gatos pingados,
ou quando uma revista (des)qualificou o movimento, chamando-o de "quadrilha".
Achamos exatamente os mesmos termos e o mesmo funcionamento discursivo
nos recortes das lutas do passado", afirma.
De acordo com o estudo, a diferença do MST em relação aos seus predecessores,
é que o movimento é mais organizado, mais numeroso, mais descentralizado
(portanto menos regional) e seu discurso tem mais visibilidade. "Mas
o discurso de luta pela terra sempre existiu e sempre foi negado pelo
sentido oficial."
Outra diferença, segundo Lucília, é que todos os demais movimentos
sofreram não apenas ataques e acusações no âmbito do discurso, mas
foram literalmente exterminados. "Além da manobra retórica, sempre
existiu um massacre no plano real. Os quilombos eram dizimados; no
Contestado, bombardearam os núcleos caboclos com avião italiano; em
Canudos, todos foram degolados, os líderes das Ligas foram presos.
Sempre houve uma reação bélica, militar, coercitiva, muito mais efetiva
no passado", diz. "É verdade que aconteceram massacres como Eldorado
dos Carajás, Corumbiara e outros, mas trata-se de outra escala."
Na visão da pesquisadora, a "satanização" promovida pelo discurso
oficial vigente começou com o movimento dos quilombos. "Fui buscar
nas canções dos negros o desejo da terra e, nos registros de cartas
dos fazendeiros, a mesma perspectiva, quando já eram utilizados os
termos 'baderneiros' e 'quadrilha' para denominar os cativos que fugiam
em busca da liberdade."
A pesquisa também analisou o levante dos camponeses suíços de Ibicaba,
no final do século XIX. "Foi o primeiro movimento em que os camponeses
se organizavam em torno de um estatuto, e também o primeiro registro
documentado da luta pela terra". Lucília teve acesso a abaixo-assinados,
cartas e atas de reunião do movimento. "Tem-se ali a formação discursiva
dominada, que foi violentada e desumanizada em sua condição de miséria
e busca de um lugar na legalidade."
Do outro lado, foram pesquisados discursos, cartas e documentos da
fazenda do senador César Vergueiro, que mostravam o sentido do direito
sagrado da terra, caracterizando o discurso dominante. No conflito
de Canudos, segundo Lucília, acontece o mesmo confronto. "Não pude
analisar com profundidade os textos escritos por Antônio Conselheiro,
mas consegui valiosos registros de depoimentos, cartas e recortes
de jornal, além da contribuição de autores como Euclydes da Cunha
e Manoel Benício."
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