Mais da metade dos textos publicado no jornal Folha de S. Paulo são contra regulamentação da propaganda de alimentos infantis. Essa foi a conclusão da jornalista e mestre em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública de São Paulo (FSP), Fabiane Leite de Almeida. Ela pesquisou a construção do discurso sobre a regulamentação dos alimentos ultraprocessados no jornal entre os anos 2004 e 2012. Foram analisados ao longo desses oito anos 184 textos, que tratavam da regulamentação do marketing de alimentos para crianças. Em termos percentuais, houve um certo equilíbrio: 51% dos textos foram contrários, mas, para Fabiane “há maneiras e maneiras de contemplar opiniões favoráveis e desfavoráveis de um mesmo assunto", disse.
A assimetria aparece na construção do texto. Numa mesma reportagem, ela encontrou opiniões favoráveis e desfavoráveis. O “ouvir o outro lado" é mandamento do jornalismo, mas apenas o pensamento do representante do mercado publicitário aparece entre aspas, com adjetivos de muito efeito. O posicionamento do setor de saúde surge de maneira protocolar e indireta, resumido a um "o governo informou que o intuito da regulamentação é melhorar a alimentação das crianças". Fabiane disse que isso nem sempre acontece por uma escolha proposital do jornalista, e sim como resultado das relações de poder que existe entre os setores da sociedade. "[Essas relações de poder] nem sempre ficam claras. Uma reportagem que era aparentemente equilibrada, revela nuances, marcas da desigualdade", disse. A indústria alimentícia, o mercado publicitário e os representantes dos veículos de comunicação relacionaram a proposta a um atentado à liberdade de expressão.
A pesquisadora também observou que, na iminência da aprovação da resolução que regulamentaria a propaganda dos alimentos ultraprocessados, o discurso sobre o risco de obesidade infantil foi deslocado do campo da saúde pública para o debate sobre a liberdade de expressão comercial e a voz do jornal realmente foi alinhada ao mercado na maior parte do tempo. "Mas, mesmo sendo contrária à regulamentação, o jornal foi, pontualmente, dissonante das vozes do mercado ao defender, por exemplo, o aumento das taxas de alimentos ultraprocessados", disse.
A discussão sobre o tema teve início em 2004, com a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que a regulamentação da propaganda de alimentos ultraprocessados seria uma forma de proteger a população infantil, considerada vulnerável a esse tipo de influência. Em 2006, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária - Conar- orientou que a publicidade de alimentos e bebidas infantis se abstivesse de qualquer imperativo de compra quando destinada às crianças. A regulamentação oficial foi publicada em 2010 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa -, mas foi suspensa sob o argumento de que a Constituição Federal não concedeu à Anvisa o direito de legislar sobre o tema. "A propaganda não é a única causa da má alimentação das crianças, mas é um fator importante, com grande poder de fogo e estudos apontam que a autorregulamentação coíbe os comerciais mais abusivos, mas não necessariamente reduz a exposição de crianças às mensagens publicitárias", disse Fabiane.