A República Democrática de São Tomé e Príncipe é um estado insular localizado no Golfo da Guiné, na costa ocidental do continente africano, composto basicamente por duas ilhas: Ilha de São Tomé e Ilha do Príncipe. Fruto de colonização lusitana, o país tem a língua portuguesa como oficial, mas uma parcela de sua população se comunica em outro idioma, o principense. Com seu uso rareando gradativamente entre a população do país, o idioma principense e sua relação com o português foram objetos de uma dissertação de mestrado que acabou por desenvolver o primeiro dicionário bilíngue entre as duas línguas.
O trabalho “Um dicionário principense-português”, de Vanessa Pinheiro de Araújo, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), tem como objetivo servir de instrumento para difusão da língua principense dentro e fora da comunidade do país, além de revelar um pouco da complexidade cultural e a herança linguística de São Tomé e Príncipe.
Pertencente à família das línguas crioulas de base portuguesa, o principense está em vias de extinção acelerada. “A imagem das línguas crioulas como ‘imperfeitas’ entre os próprios habitantes da Ilha do Príncipe, em particular - e de todo o país, em geral -, a inexistência de letramento em língua principense e a precariedade no mundo da escrita em São Tomé e Príncipe são fatores que desestimularam os esforços para a preservação e manutenção das línguas crioulas santomenses”, explica Vanessa.
A pesquisadora também menciona fatores históricos que vem contribuindo para a diminuição do uso da língua. “A diminuição da população étnica, a escolarização em português, políticas de desvalorização das línguas nacionais de São Tomé e Príncipe no período colonial e, mais recentemente, o maior acesso aos meios de comunicação fizeram com que o português alcançasse um prestígio crescente e o principense fosse relegado a um papel secundário no país”, diz a autora do trabalho.
A base do dicionário foram vocábulos coletados das poucas fontes impressas relativas ao assunto, de autores como Almada Negreiros, Marius Valkhoff e Fernando Reis, mas também em trabalho de campo. “Em março de 2009, estive na Ilha do Príncipe e pude coletar meus próprios dados. Ao mesmo tempo, todo o material coletado da literatura foi verificado com falantes nativos e ampliados em outras viagens de campo”*, conta Vanessa.
A pesquisa constitui assim um rico legado não somente para a manutenção da língua principense, mas também para a propagação dos valores culturais do local, principalmente por tratar-se da primeira obra do gênero relativa a esse idioma escrita em português. Segundo a autora do dicionário, todas as menções ao principense em manuais de crioulística ou em livros-texto sobre línguas crioulas utilizam como base os livros Das portugiesische Kreolish der Ilha do Príncipe (1973), de Wilfried Günther, e Principense Grammar, Texts, and Vocabulary of the Afro-Portuguese Creole of the Island of Príncipe, Gulf of Guinea (2009), de Phillip Maurer. “Na primeira, a língua-veículo do texto é o alemão e na segunda, o inglês. Ou seja, ambos os trabalhos são pouco ou nada acessíveis à população da Ilha do Príncipe”, diz Vanessa.
Antes de apresentar o dicionário, que conta com cerca de 3 mil verbetes, a autora apresenta o cenário da situação sociolinguística do principense, a metodologia e forma de análise dos resultados, questões relativas à dificuldade do acesso à ilha também considerações a respeito da linguística de contato com o idioma local.
*A viagem de campo contou com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e os trabalhos posteriores tiveram suporte financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).