ISSN 2359-5191

11/04/2003 - Ano: 36 - Edição Nº: 04 - Sociedade - Instituto de Biociências
Estudo genético evidencia origens dos quilombos do Vale do Ribeira

São Paulo (AUN - USP) - Qualquer aluno de ensino médio sabe que há descendentes de escravos negros que vivem em uma região isolada, a sudeste do estado de São Paulo (fronteira com o Paraná), chamada Vale do Ribeira. Mas quem são esses negros? Quais suas origens? Através de estudos sobre a variação genética de populações locais, a professora Regina Célia Mingroni Netto e seus orientandos estão obtendo estes dados e oferecendo para as comunidades do Vale um tipo de ajuda diferente do comum.

O projeto “Variabilidade molecular em populações brasileiras: um estudo do cromossomo X frágil”, financiado pela FAPESP, é conduzido por Regina há dois anos e meio. Ele é vinculado ao Centro de Estudos do Genoma Humano (CEGH), pelo qual a professora também pesquisa a síndrome do cromossomo X frágil. Ela define o trabalho que faz no Vale do Ribeira como “um estudo filogeográfico” das comunidades de Abobral, Galvão, São Pedro, Pedro Cubas, André Lopes, Sapatu, Nhunguara (próximas à cidade de Eldorado), Maria Rosa e Pilões (no entorno da cidade de Iporanga). “Os genes que estudamos são neutros, isto é, não definem nenhuma característica que poderia ser influenciada pela seleção natural, para que não surjam complicações nas análises”, diz Regina. Os estudos apontam a relação genética que possuem os indivíduos de uma mesma comunidade e as semelhanças e diferenças no que tange indivíduos de comunidades diferentes. É feita também a comparação com grupos de populações do estado de São Paulo, tribos africanas (como os Bantu e os Benin) e as etnias que compõem o estrato populacional do Brasil – índios, brancos e negros.

Nelson Henderson Cotrim, orientando da professora, defendeu recentemente a dissertação de mestrado “Genética das inserções de alu em remanescentes de quilombos”, na qual verifica estatisticamente a freqüência de quatro tipos diferentes de regiões cromossômicas (alelos ou “genes”) entre as comunidades. Há ainda a comparação da freqüência com populações de diversas regiões do globo, índices para calcular a diferenciação genética (medem a mestiçagem e o fluxo gênico) e a construção das árvores de parentesco entre as comunidades.

Uma das conclusões a que chega Nelson é que há um estreito parentesco genético entre as populações de Galvão e São Pedro. Há indicadores de que a população de Abobral é mestiça com a de São Paulo, ou seja, sua formação muito provavelmente remete a filhos de escravas com brancos. Os indivíduos da tribo africana Bantu aproximam-se dos de Galvão e São Pedro em sua origem genética.

A aluna de pós-graduação Lucia Inês de Macedo Souza está preparando sua dissertação de mestrado com base nas pesquisas com o cromossomo Y (que define o sexo masculino no embrião, dentre outras características) dos homens das comunidades para conhecer suas origens: se africanas, indígenas ou européias. Até o momento, sabe-se que a contribuição ameríndia no cromossomo Y é pequena, e o grupo étnico dos guaranis está distante geneticamente das comunidades. No entanto, se levarmos em conta o DNA mitocondrial (a mitocôndria é uma organela que possui DNA com herança principalmente materna), surgem indícios que 30% desta contribuição genética é indígena, o que permite concluir que não foram homens indígenas os responsáveis pela mestiçagem com a população dos quilombos, mas sim as mulheres. Outro dado levantado por Inês é o de que algo em torno de 20% dos cromossomos Y dos indivíduos das comunidades tem características européias, uma clara amostra da relação entre senhores coloniais e escravas negras.

A origem de Galvão e São Pedro é curiosa e remete a um único indivíduo: Bernardo Furquim, negro liberto que supostamente viveu na região e desposou duas mulheres, com quem teve 24 filhos. A lenda foi comprovada parcialmente quando Inês verificou que os cromossomos Y de dois indivíduos (um de cada população), que se diziam descendentes diretos de Bernardo pelo lado paterno, eram idênticos. Eles muito provavelmente descendem de um mesmo ancestral do sexo masculino.

É interessante observar como geneticamente comprovam-se fatos históricos já conhecidos, como a mestiçagem entre senhores coloniais e suas escravas, que muitas vezes aconteciam com abusos sexuais. É impossível pensar nos quilombos como comunidades homogeneamente constituídas, uma vez que seus indivíduos já de início pertenciam a diversas tribos africanas e miscigenaram-se com estrangeiros e seus próprios membros. Uma das comprovações da pesquisa da professora é essa, que os indivíduos são geneticamente muito diferentes entre si. “A mistura genética já ocorreu na base da formação dos quilombos”, diz Regina. “Mas foram mantidos os traços culturais originais, como produção agrícola primitiva, utilização coletiva da terra, religião e modo de vida. É um retrato do que era um quilombo no passado, ou ao menos até que fosse estabelecido contato com a civilização, nos idos de 1960”.

Como mencionou Regina, A região do Vale do Ribeira, que ocupa 10% do território do estado de São Paulo, ficou praticamente isolada até cerca de 40 anos atrás. Dr. Joel Rufino dos Santos, presidente da Fundação Cultural Palmares, define quilombo como “modelo de sociedade alternativa à sociedade colonial escravista”. O Vale do Ribeira é pobre, de difícil aceso, sofre com enchentes constantes e tem terra pouco fértil, mas aparentemente seu solo é rico em alumínio.

O grupo de pesquisadores, liderado por Regina, viaja para o Vale do Ribeira na companhia de um médico pediatra. A professora está presente em quase todas as viagens, e diz que é difícil acreditar que condições de vida tão precárias existam no estado de São Paulo. “Há problemas graves de atendimento médico, saneamento básico, alimentação. Os hospitais de Eldorado não estão preparados para fazer cirurgias”, garante. Os exames médicos e laboratoriais feitos pela equipe são enviados para as famílias visitadas, assim como o encaminhamento para um futuro tratamento, caso este seja necessário. Também é feito um aconselhamento genético para as famílias das comunidades. Um agente comunitário de saúde agenda as visitas do grupo com intervalos de cerca de três dias, e gasta-se, em campo, de 4 a 12 dias na visita, dependendo do tamanho da comunidade.

Uma das próximas etapas do trabalho será a identificação de mutações responsáveis pela anemia falciforme nos indivíduos da comunidade, que poderia explicitar uma maior relação com tribos africanas que possuem essa característica. Outro objetivo é estudar a origem genética da hipertensão em negros, já que é sabido que tais indivíduos tem propensão ao desenvolvimento de pressão arterial elevada.

Para quem se interessar em conhecer mais a fundo as origens dos quilombos do Vale do Ribeira, é indicada a leitura dos livros “Quilombos em São Paulo: Tradições, direitos e Luta” e “Negros do Ribeira: Reconhecimento étnico e Conquista do Território”, editado pela ITESP e escritos por diversos autores.

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