ISSN 2359-5191

22/06/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 54 - Educação - Faculdade de Educação
Cultura da periferia ainda tem pouco espaço no conteúdo escolar
Grupo de pesquisa da USP trabalha rap, break e funk em escolas públicas paulistanas, e ressalta que tais ritmos valorizam história e cultura afro-brasileira
Para a professora Monica Amaral, ritmos da periferia fazem parte da cultura e da história da população negra. Foto: Reprodução

Embora letras de hip hop e funk estejam presentes no cotidiano de todos os jovens da periferia, o currículo escolar muitas vezes não abrange esses conhecimentos. A atuação de um grupo de pesquisa da Faculdade de Educação (FE) da USP em escolas de São Paulo busca alterar esse quadro, tornando a arte da periferia parte do conteúdo abordado em sala de aula.

O grupo fez parte da equipe de pesquisadores do projeto Rappers, os novos mensageiros urbanos da diáspora afro-brasileira na periferia de São Paulo: a contestação estético-musical que emancipa e educa, coordenado pela professora Mônica Teixeira do Amaral e financiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). A pesquisadora explica que a equipe contou com pesquisadores e artistas, que atuaram de 2011 a 2014 na ONG Casa do Zezinho e em mais três escolas paulistanas. Em parceria com professores dessas instituições, o grupo da FEUSP desenvolveu atividades que relacionaram a arte popular aos conteúdos tradicionalmente estudados na escola. “Começamos a conversar com os professores para ver como é possível, por exemplo, articular o ensino da capoeira e as musicas selecionadas com a história do negro no Brasil”, diz Monica.

Em busca de embasar as atividades do projeto, também foram realizadas entrevistas com vários artistas contemporâneos, incluindo alguns mais conhecidos do grande público, como o rapper Mano Brown (vocalista do grupo Racionais MC’s). “A gente foi fazendo uma série de abordagens híbridas, por exemplo do rap com o jazz, do break com a capoeira, e também fomos trazendo culturas ancestrais, para dialogar com as culturas urbanas contemporâneas”, explica a pesquisadora.

Além do trabalho de articulação com os professores, Monica aponta que o programa também teve grande adesão dos alunos. “Eles mesmos [os alunos] dão ideias, trazem musicas, ritmos, estabelecem relações com o que eles viveram, como eles estão percebendo o noticiário, ou o que os pais contaram do passado e do presente”, diz. Segundo ela, trazer esses ritmos da periferia para dentro da escola, além de valorizar a cultura negra, torna os conteúdos mais interessantes aos alunos e próximos de sua realidade.  “Daí a nossa proposta, de enfatizar o ensino da tradição africana e afro-brasileira por meio do diálogo com as culturas que eles apreciam e que faz sentido pra eles”. 

 

O rapper Mano Brown foi um dos entrevistados pelo grupo da professora Monica. Foto: IG


Ritmos da periferia dão voz à população negra

A professora explica que o rap tem uma tradição de denuncia das desigualdades que envolvem a população da periferia, além de ser uma forma de valorização da história e da cultura do jovem negro. “É uma forma de fortalecimento da identidade cultural desse jovem, porque ele é sempre muito maltratado e discriminado”, comenta. “Então, ele encontra nestas culturas uma forma de se valorizar e com isso enfrentar a violência do Estado e a marginalização de uma maneira inteligente, crítica e criativa”.

Já o funk, segundo a pesquisadora, possui uma crítica mais debochada e irônica.  “É uma crítica que passa pela moral, ironia e brincadeira”, diz. Apesar disso, Monica reitera que o ritmo é um instrumento de valorização da sensualidade e da moral sexual afro-brasileira. “É uma moral que nada tem a ver com a moral sexual branca, católica, protestante ou o que for. Por isso, ele é objeto de muito preconceito e de utilização da mídia no sentido de banalizá-lo completamente”, aponta.


Políticas públicas

Em vista dos bons resultados obtidos com o projeto — sobretudo na Escola Municipal Saturnino Pereira, localizada na Zona Leste — uma parceria com o governo municipal está sendo realizada. O DOT (Diretoria de Orientação Técnica) Étnico-Racial de Guaianazes, órgão da Prefeitura, concederá apoio para que o grupo se reúna com professores de toda a região. Segundo Monica, as reuniões propiciarão um compartilhamento das práticas aplicadas no Saturnino Pereira às demais unidades de ensino. “O objetivo é expandir essas experiências em escolas específicas para o conjunto da rede”.

Monica afirma que, a partir deste ano, um novo projeto será desenvolvido por seu grupo, dessa vez intitulado O ancestral e o contemporâneo nas escolas: reconhecimento e afirmação de histórias e culturas afro-brasileiras, buscando expandir ainda mais a proposta anterior. A pesquisadora argumenta que ambos os projetos visam a auxiliar na implementação, em conjunto com os professores, da lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras nas escolas do País. Embora a diretriz tenha sido sancionada há 12 anos, muitos professores e colégios ainda sentem dificuldade para colocá-la em prática. Para a pesquisadora, a melhor forma de preparar os docentes para abranger a temática negra em suas aulas é articulando a arte popular urbana ao conteúdo tradicional. “As artes populares foram afastadas do ensino formal e colocadas na categoria de culturas populares, folclóricas, como se não fizessem parte da cultura brasileira. A nossa intenção é reintroduzi-las — ou talvez introduzi-las pela primeira vez — na escola”, diz.



Embora o ensino de história e cultura afro-brasileira seja obrigatório no Brasil, poucas escolas aplicam essa diretriz. Na foto, alunos de uma escola municipal de Angra dos Reis (RJ) participam de feira sobre diversidade e cultura negra. Foto: Prefeitura de Angra dos Reis 


Ainda no sentido de ampliar a introdução da cultura afro nas escolas — o que passa pela articulação com os ritmos negros —, a Prefeitura de São Paulo lançou recentemente um edital que visa à contratação de artistas-educadores, artistas-orientadores e coordenadores artístico-pedagógicos para trabalharem nas escolas. Apesar dessas iniciativas, Monica ressalta que a cultura brasileira ainda não reconhece as heranças afro, embora o País seja marcado pela dominância negra. Segundo a professora, os ritmos populares são discriminados pela elite branca e pela mídia, como um reflexo do preconceito que atinge as próprias populações periféricas. “A cada momento surge algo irreverente das culturas populares urbanas, que acabam sendo banalizadas e discriminadas porque denunciam a moral cínica branca brasileira, sublinhada e reproduzida amplamente pela mídia conservadora que, há muito tempo, vem dando sustentação ao ‘racismo à brasileira’”, argumenta.  “A mesma discriminação que atingiu o lundu, o maxixe e o samba, hoje atinge o rap e o funk”. 

 

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