ISSN 2359-5191

19/08/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 78 - Sociedade - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Convivência com aids é experiência que transcende tratamento clínico
Em entrevistas com homossexuais de 40 e 50 anos, antropólogo percebe como relação com vírus foi socialmente marcante para estes indivíduos
Experiência com o vírus vai além do contágio e atinge diversas esferas da vida/ Foto: Sham Hardy - CC

A soropositividade não é uma experiência individual. Os efeitos da epidemia da aids vão além dos sintomas vividos por quem é portador da doença. Perder amigos, cuidar de amigos, ajudar familiares, lutar contra a doença. Todos estes cenários transformam a situação em uma experiência compartilhada por todos aqueles que, mesmo indiretamente, foram afetados por ela.

“É interessante olhar para a relação com a aids como um processo de longo prazo, descontínuo e complexo. Muitas coisas são fundamentais, não apenas o tratamento médico”, explica o antropólogo Márcio Zamboni, autor da dissertação de mestrado Herança, distinção e desejo: homossexualidades em camadas altas na cidade de São Paulo.

O objetivo original do estudo não foi explorar a questão da aids. Zamboni, no entanto, relata que durante uma série de entrevistas realizadas para refletir sobre relações familiares e posições de classe entre homens e mulheres homossexuais na faixa etária de 40 e 50 anos, o tema surgiu com força acentuada entre os colaboradores.

“Comecei a ver que essa era uma questão muito importante. Grande parte dos homens que entrevistei me disseram que eram soropositivos e essa era uma questão central na trajetória deles”, diz Zamboni.

O antropólogo explica que, mesmo os entrevistados que disseram não ser soropositivos, demonstraram que a experiência com epidemia, principalmente em seu início, foi um evento muito marcante em suas vidas. E não apenas pelo lado negativo.

“Eles perderam amigos e sofreram muito com o pânico social que isso gerou.  Mas o que mais me surpreendeu é que eles não falavam apenas dessa experiência como algo negativo. Eles tinham enxergado algo positivo. Alguns disseram como isso os fez dar mais valor à vida, a busca de viver intensamente, a perseguir projetos mais coletivos e ter mais cuidado com o próprio corpo”, afirma Zamboni.

Nós vivemos!

As entrevistas para a dissertação foram feitas no formato de “história de vida”, por meio de um método conhecido como “bola de neve”. Esta estratégia consiste na ideia de iniciar as conversas com um indivíduo e pedir para ele apresentar amigos ou conhecidos de perfil semelhante que também estejam interessados em participar do estudo. Com isso, é possível construir uma “rede” de entrevistados.

“No processo da entrevista eu consegui estabelecer com alguns dos entrevistados uma relação mais próxima, e seguimos conversando mesmo depois de terminar o roteiro. Frequentei com eles algumas situações de sociabilidade e produção artística. É o que a gente chama de observação participante em antropologia”, afirma Zamboni. No total, seis homens e três mulheres foram entrevistados. Entre os indivíduos estavam pessoas que vivem com o vírus de 20 há 30 anos.

O antropólogo conta que, durante as entrevistas, não perguntou nada diretamente sobre a aids. Todas as conversas sobre o tema surgiram do próprio entrevistado. Zamboni relata que no decorrer das conversas em que a memória da epidemia aparecia ele prestava mais atenção e tentava desenvolver um pouco mais o assunto. De acordo com ele, seu trabalho foi feito, basicamente, sobre fragmentos de discursos.

A experiência com a doença aparecia em diversas esferas das vidas dos entrevistados: nas relações amorosas, nas relações familiares, na produção artística, na orientação política.

“Procurei considerar a importância do tratamento, mas não me restringi a isso. Quis ver quais outras experiências tinham ajudado pessoas a lidar com esse sofrimento vivido. Como, por exemplo, relações amorosas com outras pessoas soropositivas tinham permitido trocar experiências sobre como enfrentar a dor e o estigma”, afirma o antropólogo.

Zamboni afirma que, durante a pesquisa, foi possível perceber como a soropositividade era, em si, um marcador social de diferença. No início da epidemia, a aids era muito associada à homossexualidade. Por conta disto, descobrir ser soropositivo era também não poder mais esconder sua orientação sexual.

“Percebi também que a epidemia de aids também havia ajudado a conformar um sentido particular de geração. Ela marcou os indivíduos que viveram aquele momento histórico de maneira particular. Cria um sentimento de ‘nós vivemos e vocês não, então vocês não têm como saber porque vemos as coisas desta maneira’”, afirma o antropólogo.

Zamboni alerta ainda para a maneira como a doença é abordada na maior parte dos trabalhos acadêmicos. Segundo o antropólogo, a maior parte dos trabalhos não aborda a experiência vivida por pessoas soropositivas por longo prazo.

“Muitos trabalhos sobre a aids, especialmente os muito focados na prevenção e contágio, perdem esta perspectiva de longo prazo. Parece que a pessoa deixa de se importar com o vírus que ela contrai”, crítica.

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