ISSN 2359-5191

02/09/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 86 - Arte e Cultura - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Ao retratar cotidiano brasileiro, Chico Buarque construiu canções em forma de crônica
Observador atento do país, artista avalia, emite opinião, interpreta fatos e propõe soluções para problemas sociais em suas obras
Desde o início da carreira, Chico era festejado por sua capacidade de exprimir sentimento popular/ Foto: Creative Commons - CC By 3.0

Em diversas entrevistas concedidas ao longo de sua vida, Chico Buarque sempre revelou o sonho de ser um cronista. No entanto, o compositor conhecido pela autoria de canções que, além de populares, são marcadas por poéticas sofisticadas, já era desde jovem um escritor deste tipo de texto. Mesmo sem sequer perceber isso, ao construir músicas com narrativas completas, precisas, que criaram empatia com o público chamado a se questionar sobre situações políticas, em toda sua carreira Chico avaliou o cotidiano brasileiro em suas obras, apontando caminhos e soluções para problemas sociais.

“Chico extrai do cotidiano a realidade presenta nas letras de suas canções. Ele não inventa. É um observador atento com a capacidade de transformar em palavras os mais variados aspectos da vida cotidiana. Mais do que retratar este cotidiano, o artista o avalia. Ele coloca valor, emite opinião, interpreta os fatos”, afirma a jornalista Miriam Bevilacquia.

Doutora em Letras pela FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), Miriam é autora da tese Tempo e artista: Chico Buarque, avaliador de nossa cotidianidade.

“No mestrado estudei as crônicas de Machado de Assis e pretendia aprofundar a análise sobre o tema no doutorado. Minha primeira opção para o projeto foi a produção de Rubem Braga. No entanto, no início deste estudo, encontrei um crônica de Braga dizendo que a canção A Banda, de Chico Buarque, era uma boa crônica. Isto me chamou a atenção e acreditei que uma pesquisa por este viés seria mais rica, tentado identificar se as letras de canções podem realmente ser crônicas”, explica a jornalista.

Ao analisar diferentes momentos da obra “buarqueana” ao longo de cinco décadas, Miriam conseguiu perceber temas recorrentes nas canções. A situação política do país, trabalhadores pobres e imigrantes da construção civil, a fragilidade do artista diante da indústria cultural, o capitalismo, a malandragem, a grande cidade, o homem comum. Todos estes elementos são objetos frequentes da preocupação do compositor.

“O que acredito ser mais interessante na produção buarqueana é que ela sempre foi capaz de traduzir situações que estavam sendo vivenciadas, sem que, muitas vezes, a sociedade já tivesse se dado conta desses aspectos”, explica Miriam.

A jornalista destaca que as canções buarqueanas podem ser classificadas como crônicas pelo compromisso do artista com a realidade. Diferentemente do que acontece no cancioneiro nacional, no qual o tema do amor (não correspondido) é predominante, Chico Buarque conscientemente escolheu outro caminho a ser traçado em suas produções.

“Muito mais que a propagada escrita no feminino, o que se destaca na obra buarqueana é a brasilidade da qual ela está impregnada. Tanto pela forma, como pela escolha dos ritmos musicais e pelo texto em crônica, um gênero genuinamente nacional. Sua leitura do mundo transformou sua arte em arte utilitária, capaz de criar consciência, de mobilizar massas”, diz Miriam.

Construção midiática

Para entender a construção da imagem de Chico Buarque e de que maneira o artista se transformou em uma espécie de mito, Miriam Bevilacquia analisou como o compositor foi retratado pela imprensa entre as décadas de 60 e 70.

Ao estudar publicações como Veja, O Estado de São Paulo e Intervalo, a jornalista capturou matérias relevantes sobre Chico e sua obra. Segundo a tese, a divulgação incessante da imagem do jovem compositor revela como a mídia percebeu, desde o início de sua carreira, como o artista conseguia colocar em suas canções não apenas suas próprias aspirações, mas as de toda uma sociedade brasileira que, em 1966, já vivia sob uma violenta ditadura.

“Chico era festejado pelo seu talento, pela sofisticação de suas letras, pela capacidade de exprimir o que as populações dos grandes centros sentiam, pela inteligência e também por sua beleza e bom comportamento”, explica Miriam.

Para a jornalista, a exaltação de Chico foi importante para legitimar o artista como avaliador de nossa cotidianidade. Ao apresentá-lo como a soma de diversas aspirações coletivas, a imprensa garantiu a notoriedade e credibilidade do compositor.

Músicas

Em sua tese, Miriam analisou com maior profundidade 24 músicas de um repertório de mais de 300 canções de Chico Buarque. Atendendo pedido da reportagem da Agência Universitária de Notícias, a jornalista escolheu as cinco canções que considera ser as mais representativas tanto pela aceitação do público quanto pelo seu significado no momento de seu lançamento.

Confira abaixo os comentários da autora da tese e ouça cada uma das canções analisadas:

A Banda, por ter sido a canção que lançou Chico nacionalmente e por fazer o elo entre o lirismo a que os ouvidos condicionados pela bossa-nova estavam acostumados e a nova ordem de colocar em foco os personagens do dia a dia, a gente sofrida.


Roda Viva, por ser o retrato de um momento muito especial na carreira e na vida pessoal de Chico. O sucesso havia chegado no ano anterior e criou uma imagem à qual o artista deveria corresponder, o que incomodava profundamente o compositor. Roda Viva vai ser tema da peça homônima, na qual haveria a tentativa do compositor de se rebelar contra a imagem de bom moço que ele havia adquirido.

Apesar de você, composta em 1970, em plena ditadura, e lançada na forma de um compacto, vendeu cem mil cópias, antes que o governo compreendesse a letra e censurasse a canção.  Disfarçada por uma briga de namorados, era um recado do povo brasileiro aos militares, prometendo uma vingança sem armas.

Construção, olhar a letra de Construção no papel já é algo surpreendente. É um bloco compacto, pesado, sem qualquer leveza, muito diferente do que normalmente o público espera de uma letra de canção. Todos os versos são longos e todos terminam com uma palavra proparoxítona, o que combina com a melodia arrastada e angustiante.

A canção é uma crítica à sociedade que não enxerga ou faz que não enxerga uma classe inteira de trabalhadores pobres, infelizes, que constroem as casas e os apartamentos de luxo onde a classe alta irá morar, mas que para eles é um sonho inalcançável. Para essa elite econômica, esse trabalhador que tirou a própria vida num momento de desespero ou talvez de lucidez,  não significa nada mais do que "um pacote flácido, agonizando no meio do passeio público, atrapalhando o tráfego." É o retrato da indiferença humana que Chico enxerga e retrata tão bem.

Cotidiano,  ao contrário de muitas de suas canções, o discurso de Cotidiano, a começar pelo título, não guarda qualquer surpresa, qualquer ironia, qualquer intenção implícita. Chico não quer ser surpreendente, mas óbvio, quase chato, como é a rotina de seu personagem. A melodia segue a mesma toada do começo ao fim, quase não se percebe qual é a primeira e a última estrofe porque, como a letra, a melodia parece não ter fim, e, principalmente, porque num movimento circular, a primeira e a última estrofe são exatamente iguais. O círculo do cotidiano encarcera o personagem e ele fica dando voltas em torno da invariabilidade do seu dia a dia.

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