ISSN 2359-5191

29/10/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 103 - Sociedade - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Subestimado pela antropologia, povo indígena da Amazônia tem rituais complexos
Pesquisa vencedora do prêmio Tese Destaque aborda os 'círculos de coca' dos hupd’äh, da região do Alto Rio Negro
Instrumentos para o preparo da coca/Danilo Paiva Ramos

Após quatro viagens de cerca de três meses e meio de duração, o pesquisador Danilo Paiva Ramos produziu uma tese que busca mostrar a complexidade e profundida das práticas ritualísticas povo indígena de pouco contato hupd’äh, principalmente os chamados "círculos de coca", no qual os senhores hupd’äh se juntam para mascar as folhas de coca, conversar, refletir sobre seus mitos e relembrar percursos pela mata que levam até lugares sagrados.

A tese foi vencedora na categoria Ciências Humanas da quarta edição do Prêmio Tese Destaque da Universidade de São Paulo, que concede R$ 10 mil em bolsa.

Inicialmente, o pesquisador foi levado à região do Alto Rio Negro (AM), na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, pela ONG Saúde Sem Limites, para qual trabalhava. Ele fora incumbido de realizar um diagnóstico participativo sobre saúde e qualidade de vida entre os hupd’äh. "Era a primeira vez que eu pisava em solo amazônico. Fiquei encantado com a força da paisagem florestal e dos rios cortando as matas", contou.

Os círculos de coca apareceram logo na primeira noite, quando Ramos foi convidado para participar ao lado de seu primeiro e mais importante amigo hup, o senhor Henrique. "Tive dificuldade de comer o pó verde, mas os demais senhores presentes me mostraram cuidadosamente como deveria fazer para consumir a coca sem tossir", relatou (o pó precisa ser jogado nos cantos da boca ou sob a língua e ser absorvido devagar, não pode ser lançado diretamente na cavidade bucal, pois se espalha, atingindo a laringe e a traqueia) . A partir dai, o tema para sua pesquisa de doutorado se delineou.

Durante suas viagens, Ramos teve que aprender a falar a língua dos hupd’äh, já que poucos deles falam português, além de ter tido que lidar com a condição de "estrangeiro", tendo que enfrentar a incapacidade de lidar com situações corriqueiras. "É preciso aceitar que todos riam de você todo o tempo pelo modo desajeitado com que caminha pela mata e com que aprende a dizer as primeiras palavras numa língua tão diferente", contou.

 Vista da aldeia/Danilo Paiva Ramos


CÍRCULOS DE COCA

Em sua tese, Ramos –que toma como referência teórica os trabalhos de autores como Tânia Stolze de Lima, Claude Lévi-Strauss e Peter Gow– define os círculos de coca como performances, no sentido que possuem um padrão no modo como se estabelecem. Os senhores hupd’äh –apenas homens que já tem filhos participam desses encontros– sentam-se nos mesmos lugares e assumem posturas específicas nessas rodas de conversa diárias, explica.

No início desses encontros noturnos, os anciãos conversam sobre fatos cotidianos, contam piadas, enquanto outras pessoas da comunidade pedem para um dos senhores realizar um benzimento de proteção ou cura de doenças. Depois, conforme a noite cai, os "comedores de coca" –a planta é transformada em um pó verde que é mastigado pelos participantes– passam a falar de encantamentos xamânicos, contar mitos e refletir sobre eles, além de relembrar detalhes dos percursos pela floresta que levam aos lugares sagrados, como morros e cavernas.

A coca é parte importante desse ritual, já que é tida como um alimento ancestral essencial para que os participantes dos encontros possam conversar e relembrar mitos sob seu efeito estimulante, que dá maior intensidade à respiração, aumenta a capacidade de concentração e tira o sono.

Essas rodas não são uma prática exclusiva dos hupd’äh, outros povos da região também consomem coca de forma ritualizada, mas, em certos casos, com menor intensidade, devido à repressão dos missionários salesianos e às incursões da polícia federal, quando foram queimadas roças de coca, na década de 1980. Os hupd’äh foram pouco atingidos por esses fatores externos e mantém o antigo costume.

"Sem as conversas noturnas, os mitos seriam esquecidos e a cura e a proteção xamânicas não seriam possíveis. Além disso, os hupd’äh não conseguiriam mais encontrar os locais onde seus antepassados viveram ou por onde passaram seus ancestrais míticos", explica Ramos. Para ele, durante as rodas de coca, os anciãos podem "se deslocar e se mover pelo mundo relembrando as ações de seus ancestrais, observando animais e plantas e visitando as casas de seres não humanos, como o Trovão e os Gente-Onça, que fazem parte de sua mitologia.

Segundo o pesquisador, os hupd’äh são vistos pela literatura científica como um povo com "práticas rituais pouco elaboradas", cujo único interesse antropológico estaria na sua competência de caça e seu nomadismo. Ele defende que, apesar dos hupd’äh não possuírem uma arte plumária (como os cocares) ou padrões sofisticados de pintura corporal, como outros povos, os círculos de coca mostram uma complexidade e um modo de existência "difícil de ser descrito pela antropologia tradicional". "Tentei revelar que a riqueza e complexidade das práticas rituais, xamânicas, produtivas e de mobilidade encontra-se nas sutilezas."

Para Ramos, o pesquisador precisa abandonar categorias restritiva usadas para descrever os hupd’äh, como "nômades, caçadores-coletores, e com baixa hierarquia" para realmente entender de modo sensível esse povo indígena.

Atualmente, ele está trabalhando como pesquisador visitante na Universidade do Texas, onde está se dedicando a uma especialização no campo da linguística para capacitar-se melhor para o estudo do discurso xamânico dos hupd’äh. Não antes de fundar, no ano passado, em parceria com outros profissionais o Coletivo de Apoio à Causa dos Hup/Yuhup para auxiliar as famílias desses povos que vão ao centro urbano de São Gabriel da Cachoeira (AM) para ter acesso a benefícios sociais, expedir documentos e retirar dinheiros. Essas famílias acabam sendo expostas a condições adversas de alojamento e alta vulnerabilidade social, sendo vítima de situações de violência e exploração.  

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