ISSN 2359-5191

11/11/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 108 - Arte e Cultura - Escola de Comunicações e Artes
Metalúrgicos e motoboys ganham abordagens diferentes no meio audiovisual
Reflexões geradas durante estudo resultarão em um documentário e dão margens para pensar processo de modernização industrial e urbana da sociedade brasileira
A arte audiovisual. | Fonte da imagem: idmmag.com.

Trânsito parado, fileiras de automóveis, buzinas a gritar, nervos acelerados. Cenário corriqueiro em centros urbanos. Na cidade de São Paulo então, nem se fala. Nesse plano, caótico em muitos horários, há diversas pessoas suando um bocado para cumprirem tarefas. Os veículos ali presentes entrecruzam os caminhos de inúmeras categorias profissionais, em especial de duas: metalúrgicos e motoboys. Os primeiros, caso labutem na indústria automobilística, materializam as quatro rodas. Os outros, por vezes, recebem olhares tortos dos motoristas. Mas não é apenas o carro que une essas figuras: colocações sociais e o pano de fundo da modernização industrial e urbana proporcionam mais alguns laços entre os agentes enfocados. Ao trabalhar com obras audiovisuais, Marco Antonio Pereira do Vale constrói uma linha de análise sobre a maneira como esses personagens são retratados na cinematografia. Respaldando-se nas ponderações realizadas em sua tese de doutorado, o documentarista está produzindo um novo material em vídeo, no qual há um encontro do metalúrgico com o motoboy.

 

Federico Fellini, um dos mais importantes cineastas italianos, definiu a sua arte como “um modo divino de contar a vida”. Expondo delícias e agruras, as películas têm o poder de elaborarem imaginários acerca dos mais variados temas. A tese de doutorado em questão analisa um recorte de obras, entre as quais foram selecionadas: Braços cruzados, máquinas paradas (1979), de Roberto Gervitz e Sergio Toledo; Linha de montagem (1982), de Renato Tapajós; Peões (2004), de Eduardo Coutinho; Motoboys, vida loca (2003), de Caito Ortiz; Na garupa de Deus (2002), de Rogério Corrêa; Karl Marx Way (2009), de Flávia Guerra e Maurício Osaki. Através de uma análise teórica, estética e narrativa, Vale observa os documentários brasileiros sob óticas plurais, na posição de quem é, além de estudioso, realizador cinematográfico. Disposição de câmeras, tomadas de cenas, montagem e trilha sonora são exemplos dos múltiplos ângulos apresentados pelo professor. Desvendar as relações entre metalúrgicos e motoboys é uma forma de compreender o funcionamento cíclico da moderna organização social brasileira nas últimas décadas, além de “discutir o quanto cinema pode ser o veículo para quebrar preconceitos, estereótipos”, como salienta o pesquisador.

 

           

“Braços cruzados, máquinas paradas”, (1979), de Roberto Gervitz e Sergio Toledo. | Fonte da imagem: www.vitruvius.com.br.

 

Metalúrgicos e motoboys: por quê?

A dupla escolhida pode gerar dúvidas em um primeiro momento. Por que contemplar metalúrgicos e motoboys em uma mesma investigação? A estranheza causada por essa junção estimulou Marco Antonio Pereira do Vale. Os motoboys, por exemplo, estão ligados à evolução da sociedade industrial, particularmente a paulista (incorpora-se a região do ABC). Olhar para essa pesquisa é enxergar a Pauliceia. “Acho São Paulo um enigma fascinante”, pontua Vale, que nasceu e sempre viveu na terra da garoa. Enquanto o metalúrgico é olhado como “herói das classes trabalhadoras”, o segundo ocupa um lugar mais marginal. Do pareamento do “mito brasileiro” com o “infrator de convivência complicada no fluxo de ruas e avenidas”, tem-se um choque, a partir do qual São Paulo e suas imediações são problematizadas e, em uma esfera mais ampla, apontamentos da História nacional são colocados em pauta. “Para Eisenstein, arte é conflito, necessariamente”, arremata Vale, embasando a sua proposta. Com um olhar crítico, o produtor propõe um entendimento, sem paradigmas, de itens vinculados ao desenvolvimento social e econômico, a partir de indivíduos que, apesar de compartilharem de uma origem humilde, são apresentados de formas distintas nas telonas.

 

“Motoboys, vida loca” (2003), de Caito Ortiz. | Fonte da imagem: academiabrasileiradecinema.com.br.  


Metalúrgicos

A filmografia sobre os empregados de indústrias, especialmente as automobilísticas, é extensa. O processo de industrialização da nação tupiniquim foi centralizado e, o acúmulo de multinacionais no ABC Paulista, é uma das provas dessa concentração. Posto que, em meados da década de 70, 10% do PIB (Produto Interno Bruto) provinha do complexo industrial paulistano, em dada hora, os metalúrgicos perceberam a sua força. Enfatiza-se, no material fílmico estudado, o caráter heroico atribuído aos protagonistas. Mesmo em Peões, película salpicada de melancolia e desencantamento, Eduardo Coutinho não deixa de externar a sua admiração pela classe capturada por suas lentes. O filme mostra as condições precárias de muitos personagens; contudo, eles são exibidos como vítimas. Em todas as histórias, estruturadas de modo linear, os metalúrgicos ganham uma áurea idealizada.

 

Metalúrgico. | Fonte da imagem: csbbrasil.org.br.   

 

Motoboys

O leque de obras que tratam sobre motoboys é bem menor: “Não tinha uma filmografia grande o suficiente”, observa o pesquisador. Diferente dos operários, o grupo não é visto de um jeito “poetizado”. Quem defende essa categoria? “Os mais individualistas, não gostam dos motoboys, porque podem quebrar o espelho ou ralar a lataria de seus carros”, pontua Vale. Os sujeitos mais progressistas, por outro lado, acreditam que a classe é alienada e vêem nela uma mentalidade capitalista. Dentro desse mito da indústria automobilística, o motoqueiro está localizado “nas frestas das contradições” do organismo social. O professor conta que ouviu questionamentos sobre a necessidade da pesquisa trazer à tona um conjunto tão desprestigiado: “Não é que eu defenda o motoboy. Quero entender a nossa sociedade. É uma profissão como outra qualquer”, explica.

 

Motoboy. | Fonte da imagem: jornalmaisnoticias.com.br.

 


Passado X presente

Não é de agora que Sampa serve de inspiração para produções audiovisuais: São Paulo Sociedade Anônima (1965), de Luís Sérgio Person, aborda as fissuras modelo do desenvolvimentista encabeçado pelas fábricas automobilísticas. “O São Paulo S/A acho um filme genial. Não só como paulistano, mas também como apaixonado por cinema”, comenta Vale. O produtor cita também Glauber Rocha e o seu fascínio, em especial, por um dos longas do ícone baiano: “Terra em transe é o maior filme brasileiro da história na minha opinião”. No entanto, os cineastas mencionados, entre outros, são, por vezes, pouco discutidos atualmente: “Não precisa destruir o que foi feito antes para colocar a sua visão”. Somada a essa fraca memória, o pesquisador avalia, com preocupação, a falta de certa consciência crítica no campo audiovisual contemporâneo. Nesse contexto, o ser acomodado também não é aceito pelo realizador: “Liberdade não vem com conforto”. Avançando a indagação para um plano mais abrangente, a crítica pode ser feita para vários setores: “O eterno erro do Brasil é achar que está estreando algo”, resume.

 

Carlos (Walmor Chagas), protagonista do longa “São Paulo Sociedade Anônima” (1965), de Luís Sérgio Person. | Fonte da imagem: cineclubeadamastor.blogspot.com.br.

 

"A realidade do metalúrgico não se restringe à fábrica, ao sindicato e aos movimentos de greve só. E a existência dos motoboys não se restringe às ruas apenas", afirma Vale. Essa complexidade é o que o produtor apresentará em seu novo projeto, um documentário que promoverá a reunião dos dois personagens centro de suas investigações. 
              

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