Mulher, negra, pobre e mãe solteira. Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi de escritora best-seller com grande repercussão mundial para o quase total esquecimento no Brasil. Seu primeiro livro, Quarto de Despejo, foi publicado depois de uma visita do jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé em São Paulo, onde conheceu Carolina e teve acesso aos seus escritos, que selecionou e organizou-os em um livro. Em seu ano de publicação, 1960, a obra entrou imediatamente para a lista dos mais vendidos no Brasil e nos anos seguintes foi traduzida para 14 idiomas. No entanto, seus outros livros não tiveram a mesma repercussão e até hoje muitos dos poemas, romances, contos e peças teatrais ainda são manuscritos inéditos.
Os escritos da artista possuem conexões com elementos culturais de seu grupo de origem, africano e afro-mineiro, e também com a literatura de cunho romântico. Segundo a historiadora Elena Pajaro Peres, que desenvolve seu pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, com bolsa FAPESP, isso é consequência da formação que está por trás de Carolina de Jesus enquanto artista. “Sua escrita tem conexão com uma cultura muito mais ampla do que São Paulo dos anos 50 na favela do Canindé, apesar da importância desse período”, explica a pesquisadora.
Para ela, a formação da escritora se deu a partir de três pontos principais. O primeiro deles foi a comunidade afro-católica em que nasceu, na pequena cidade de Sacramento (MG), inserida no Triângulo Mineiro. Carolina conta em suas memórias que conviveu muito com seu avô, um ex-escravo e rezador de terço filho de africanos originários da África Central. Suas primeiras ideias sobre a importância de ser livre vieram a partir das histórias acerca da escravidão narradas por ele. “Então a religiosidade afro-católica da Carolina é muito forte, porque vem dessa base de formação”, afirma Elena.
Outro ponto relevante para compreender os aspectos afroculturais da obra de Carolina são as leituras feitas por um oficial de justiça mulato, que lia todas as tardes em Sacramento o jornal O Estado de S. Paulo para os negros não-alfabetizados, entre eles a escritora ainda criança. Por esse motivo, Carolina, muito antes de ser alfabetizada, já tinha conhecimentos sobre os abolicionistas, a primeira guerra e outros assuntos importantes.
Essas leituras foram essenciais para a formação de um pensamento crítico e uma relação de pertencimento à cultura africana mesmo antes de entrar na escola. Carolina teve a oportunidade de estudar por dois anos em um colégio espírita, Allan Kardec, que tinha como proposta uma educação que visava o autodesenvolvimento. Esse é o terceiro ponto. Alfabetizada, a artista passou a ler livros românticos, que influenciaram na escrita que mais tarde iria desenvolver. “Então há uma confluência de fatores: há uma influência forte da cultura afro-diaspórica, mas há também uma literatura oral com mensagens provenientes do jornalismo e da cultura letrada”, explica Elena.
É por isso que as obras de Carolina possuem uma imensa riqueza cultural e de pensamento crítico. “Quando se coloca Carolina nesse contexto de diásporas africanas e de seu entrosamento com culturas vindas de diferentes lugares, a questão da precariedade é deixada de lado”, explica a pesquisadora. “Sua pobreza era material e não cultural”.
Tradução Cultural
A escritora, que nunca quis se casar e não aceitava ordens, sempre questionou os limites impostos à sua condição como mulher, negra e favelada. Em suas obras, ela conta do preconceito que sofreu em vários momentos da vida. “Nos manuscritos, há uma forte denúncia da segregação e de como os grupos foram colocados e retirados de espaços da cidade”, explica Elena.
Depois que publicou Quarto de Despejo, Carolina conseguiu grande fama, viajou pelo Brasil e pela América Latina e foi entrevistada para vários jornais. Em seu segundo livro, Casa de Alvenaria, a escritora critica esse processo de exposição, e por isso o livro não foi bem aceito na época. Mesmo com a quase nula repercussão de sua segunda obra, Carolina publica em vida mais duas obras, entre elas um livro de provérbios. Para a pesquisadora, esse livro enfatiza a conexão da escritora com a África e sua relação com o seu processo de formação dentro da cultura afro-católica: “Há uma narrativa proverbial nessas histórias africanas que passam de geração a geração”, explica. “Carolina considerava importante, quase como uma missão, publicar aqueles pensamentos”.
Segundo a pesquisadora, em seus contos, memórias e poesias, Carolina realiza uma “tradução cultural”. Ela retira elementos do contexto em que viveu e elementos da cultura africana e os traduz de uma nova forma. “Ela não traduz significados de palavras provenientes da África Central, ela traduz formas culturais, dando uma nova roupagem”, explica Elena Pajaro. “Entender esse processo de produção artística e literária na obra de Carolina possibilita compreender também outros autores afrodescendentes e a literatura brasileira em geral, que tem uma forte conexão com esse contexto migratório de movimento”, conclui a pesquisadora.
Para sua pesquisa, Elena consultou os microfilmes dos manuscritos da escritora, localizados na Biblioteca do Congresso em Washington e cadernos originais que estão no Arquivo Público de Sacramento. Cópias dos microfilmes também estão disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e na UFMG. Há algumas outras instituições que detém cadernos, como o Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro e o Museu Afro Brasil em São Paulo.