ISSN 2359-5191

08/12/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 125 - Arte e Cultura - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Minisséries expressavam tentativa de legitimação da Rede Globo
Emissora investiu no formato de "maior qualidade" para neutralizar críticas que recebia nos anos 1980, aponta pesquisa
Pedro Arcanjo, interpretado por Nelson Xavier, em "Tenda dos Milagres"

"E o coração, que é soberano e que é senhor, não cabe na escravidão" entoa Caetano Veloso na música "Milagres do Povo", composta especialmente para ser tema da minissérie "Tenda dos Milagres", da Rede Globo de televisão, e que trata da questão racial no Brasil. A minissérie foi uma das três analisadas pelo pesquisador Dimitri Pinheiro da Silva em seu doutorado em sociologia: "Abertura da teleficção no Brasil: as minisséries da Rede Globo de televisão (1982 - 1992)", apresentada a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São  Paulo.

Pinheiro se dedicou a entender os aspectos centrais na produção das minisséries, como o contexto social e político, o sentido atribuído pelos produtores e o conteúdo ideológico dos programas, entre 1982 e 1992.

Seu recorte temporal explica-se por dois fatores: um interno e outro externo. O primeiro deles se deve ao fato de a primeira minissérie da Globo, "Lampião e Maria Bonita", ter sido lançada em 1982 e a primeira minissérie a abordar diretamente a ditadura civil-militar, "Anos Rebeldes", ser de 1992. Já o segundo fator se explica pelo contexto político brasileiro: 1982 marca o início do processo de liberalização controlada efetiva da democratização e 1992, um ápice desse processo com o impeachment de Fernando Collor.

Segundo o pesquisador, a Globo é a primeira rede televisiva a apostar no formato das minisséries em um contexto no qual a emissora passava a exercer uma hegemonia na área de teleficção. Suas principais concorrentes, como a Tv Tupi e a Tv Excelsior, haviam fechado as portas e a Globo passava a reinar sozinha. "Nesse momento, a emissora vai investir em outros formatos além da telenovela, já consagrado e o mais rentável", diz Pinheiro.

Essa busca por novos gêneros está relacionada, de acordo com ele, a uma tentativa de se dissociar do regime militar – em processo de desagregação – e a um "processo embrionário de diferenciação do mercado de mídia." Para explicar, Pinheiro se baseia no contexto de indústria cultural, que busca um produto voltado para o lucro, e em um intelectual britânico, chamado Raymond Williams.

Dentro do contexto da Rede Globo, a minissérie, um produto mais bem acabado, de maior qualidade e que não é voltado imediatamente para uma rentabilidade em termos de audiência (caso das telenovelas) teria a função de angariar para a emissora uma certa respeitabilidade e credibilidade. Essa legimitização externa, por sua vez, permitiria neutralizar toda uma série de críticas e acusações direcionadas à Globo, entre elas: "servir de suporte ao regime militar autoritário, manipular a informação, explorar as várias carências do telespectador", explica Pinheiro. Dessa forma, a rede poderia "continuar operando".

As minisséries são direcionadas, então, a um público tido pela Globo como mais escolarizado, majoritariamente masculino, com mais possibilidade de acesso ao lazer e com menos disposição de "engolir o discurso situacionista da emissora", diz Pinheiro. "É um produto seleto para uma parcela seleta da população". Além disso, elas eram bastante valorizadas internamente pelos produtores, por terem maior tempo de produção, irem ao ar apenas quando finalizadas e permitirem um acabamento maior.

NA TRAMA DAS MINISSÉRIES

O pesquisador Dimitri Pinheiro escolheu três minisséries para analisar de forma mais aprofundada: "Quem Ama Não Mata" (1982), "Tenda dos Milagres" (1985), baseada na obra homônima de Jorge Amado, e "Desejo" (1990), que explora a biografia de Euclides da Cunha.

Os três programas representam, segundo Pinheiro, momentos diferentes da Globo. Em "Quem Ama Não Mata" realiza-se uma expectativa dos produtores, criada pelos chamados "Seriados Brasileiros" (como Malu Mulher e Carga Pesada), de tratar de forma mais explícita do real, ou da realidade. Assim, fala-se de violência doméstica e há uma abordagem do tempo presente.

Já "Tenda dos Milagres", que tomou mais tempo do pesquisador pela sua duração longuíssima de 30 capítulos, mostra essa mesma preocupação de abordar o real por meio de alusões. "Apesar de ela se passar no início do século 20, ela faz referências ao presente", diz Pinheiro. A obra toca em outra questão crucial da sociedade brasileira, a racial, fazendo comentários políticos mais explícitos. Há um embate melodramático e sub-tramas que discutem as estratégias do movimento negro diante do racismo e o papel da mulher negra naquela sociedade.

Mas, para Pinheiro, a discussão de fundo trata de como a utopia da mestiçagem se casa com o liberalismo conservador defendido pela Globo. Ele exemplifica com uma cena na qual um motorista negro pergunta ao patrão branco o porquê de o vilão da história, também branco, ter tanto medo dos negros. Ao que o patrão responde que não tem medo de ninguém e que pra ele preto, branco, amarelo, "tudo é gente". Nesse momento, conta o pesquisador, aparecem as filhas do patrão brincando na terra e uma mulher manda elas entrarem porque brincar na terra é coisa de "negrinha". E o motorista comenta: "é, todos iguais, mas cada um no seu lugar."

"A minissérie mostra claramente, e também critica, a apropriação desse ideal de mestiçagem pela rede Globo, mas que não questiona de fato o problema racial no Brasil", explica Pinheiro. Assim, o violão de "Tenda dos Milagres" não é racista por uma construção social, mas sim por uma questão moral, porque ele é "mau". A trama possibilita ainda a ascensão de negros "de talento", mas nunca pelo veio coletivo, do grupo, o que casa com o ideal do "self-made man" do liberalismo conservador.

"Desejo", por fim, representa um terceiro momento, no qual a alusão ao real já foi dissolvida pela própria Rede Globo, fazendo com que a minissérie não abarque temas complexos da realidade brasileira, não sendo "tão rica culturalmente". "Ela já está muito mais amarrada aos critérios comercias da emissora", explica o pesquisador.


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