Através da análise de cerâmicas produzidas entre os séculos 1 e 8 nos Andes, a pesquisadora Débora Leonel Soares, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), busca entender as práticas xamânicas e organizações sociocosmológicas ameríndias.
O xamanismo é entendido como uma estrutura de pensamento centrada na possibilidade de transformação entre os corpos. Segundo esse modelo, o mundo seria estruturado por um eixo, havendo uma separação entre o mundo de cima, chamado Hanan Pacha, associado ao sol e ao masculino; o Hurin Pacha, vinculado ao feminino, noturno e subterrâneo; e o Kay Pacha, onde as sociedades se encontram.
Esses mundos são vistos de maneira integrada, e diferentes seres têm a possibilidade de cruzar diferentes âmbitos (e, consequentemente, se transformar). Débora explica: “Estamos falando de uma cosmovisão que vê que o planeta é habitado não só por humanos, mas por animais, espíritos, deuses. Todos interagem, e esses seres supranaturais interferem diretamente na vida do presente, das pessoas. Os contatos rituais são necessários para garantir a manutenção da existência”.
O xamã seria a única pessoa que transpassaria todos os territórios, e entraria em contato com outras entidades sem se perder como sujeito. “Um indivíduo comum, quando entra em contato com esses outros seres, pode adoecer, perder a alma. O xamã não se desorienta”, conta a pesquisadora.
Detalhes da iconografia presente nos vasos retratados acima
Foto: C. B. Donnan
A cerâmica ritual
Um dos focos da pesquisa de Débora Leonel foi o estudo de imagens de curandeiros. Trata-se de um conjunto de figuras moldadas em cerâmica, que normalmente eram desenhadas realizando rituais. A análise dessas cerâmicas rituais seguiu a linha da semiótica, na qual a iconografia é entendida como linguagem. “Por muito tempo, o ameríndio levou a fama de menos evoluído, por dizerem que ele não possuía escrita. A semiótica quebra um pouco dessa ideia. A escrita por fonemas é apenas uma maneira de escrever, e nem é a mais antiga”, explica a pesquisadora. Foram mais de 700 peças selecionadas para a apuração. “Você só descobre linguagens, padrões e formas a partir do momento em que começa a comparar uma quantidade enorme de exemplares”.
Sacrifícios humanos e a cosmopolítica
O xamanismo andino também era caracterizado pela prática de oferenda humana ao cosmos. Um ato comum era o sacrifício da montanha, no qual prisioneiros eram empurrados do topo de montes. Tal procedimento fora intensificado durante longos períodos de fenômenos climáticos, como o El niño, com o objetivo de controlá-los. Débora esclarece: “O poder estatal tem muito a ver em como as elites conseguem controlar essas ligações políticas com o cosmos. Quando há muita chuva e tudo começa a ficar descontrolado, isso pode ser lido como uma inversão dos âmbitos do cosmos, e aí a necessidade dessas elites de afirmarem seus poderes, através do controle”.
Vasilhas escultóricas com cena de Sacrifício da Montanha
Fotos: Museu Larco