Os motivos que levam pessoas a cometer crimes são diversos e subjetivos. As regras da sociedade foram construídas ao longo da história da humanidade, e preceitos morais regem nossa vida. O que é certo e o que é errado mudam com o tempo, assim como o senso de justiça. Na República, o sistema é separado em poderes independentes, e fica restrito à Justiça julgar legalmente as pessoas. Mas quem é a Justiça quando não há justiça?
Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), começo da década de 1910. Nessa época, a taxa de homicídios era de menos de cinco casos para cada 100 mil habitantes, taxa que se manteve relativamente constante até 1960. O crime era muito ligado ao assassinato na família, como envolvimento com amantes, briga entre vizinhos ou entre pessoas próximas. “O homicida era visto como o pária social, a pessoa que matou a mulher ou o primo, que bebe demais, que perde o controle. Eram crimes muito associados à paixão, à irracionalidade, à explosão — eram crimes como os das peças de Nelson Rodrigues”, reflete Bruno Paes Manso.
Paes Manso estuda os homicídios da RMSP há cerca de 10 anos, e seu doutorado investiga o crescimento e a queda do crime entre as décadas de 1960 e 2010. Enquanto exercia a profissão de jornalista, ele fez uma série de entrevistas com homicidas em 1999. Nesse tempo, a taxa de homicídios estava crescendo já há 30 anos, e a expectativa era que isso se perpetuasse.
A partir da década de 60, o cenário da cidade se altera. Até 1975, a taxa aumenta e fica de cinco a dez casos por 100 mil habitantes. Até 1999, a cidade alcança 65 homicídios por 100 mil habitantes. Ou seja, de 1960 até 1999, a taxa se multiplica até dez vezes o valor anterior — crescimento de 900% em 40 anos. No período, a antiga cidade média, com cerca de 500 mil habitantes, passa a ter que lidar com uma população de 8 ou 9 milhões em menos de um século. Com o crescimento da cidade, expandiram-se as áreas periféricas de forma descontrolada. A sensação de desordem e de vulnerabilidade aumentou com o descaso da máquina pública nessa parte da cidade.
Quando muda a moral
Uma reconfiguração moral do homicídio é feita a partir dos anos 60. O que antes era visto moralmente como errado e cometido por pessoas desequilibradas passa a ser considerado instrumento de controle pelas polícias e pelos justiceiros. O homicídio torna-se uma solução em vez de um problema, uma forma de tentar estabelecer a ordem. À época, foi criado o Esquadrão da Morte (organização paramilitar) e a atividade ostensiva da ROTA (tropa especial do Comando Geral da Polícia Militar) se intensifica. “Os homicidas são celebrados como uma forma de proteger a sociedade. O pensamento ‘eu só mato quem merece morrer’ passa a ser legitimado”, analisa Paes Manso.
O pesquisador afirma que, para entender a queda dos homicídios, é preciso compreender o seu crescimento. Os bairros mais afastados eram vistos como locais mais vulneráveis, infrequentados pela polícia. Os justiceiros tentavam controlar os bairros segundo a lógica de “bandido tem que morrer”. “Mas esse processo gera um efeito dominó: as pessoas, para se defenderem, também matam o justiceiro”, argumenta ele. Inicia-se, então, uma série de conflitos entre vizinhanças, e um círculo vicioso se perpetua até o fim dos anos 90. A partir disso, até mesmo os matadores percebem que o homicídio é ruim para todos. “Ele mata, mas será vingado. Ele mata porque é necessário, e sabe que vai morrer”, completa.
Impulsionadas pelas imprevisibilidades, causadas pelo efeito dominó gerado, foram criadas condições para um novo pacto nas políticas públicas. A partir dos anos 2000, a polícia começou a atuar em bairros mais violentos na Região Metropolitana de São Paulo, a retirar armas e prender as pessoas que andavam armadas. O Estado de São Paulo é o segundo estado menos violento do Brasil, sendo a cidade de São Paulo a capital menos violenta do país. “A cidade parece perder o controle da situação, mas o fenômeno dos homicídios se estanca e começa a reduzir muito rapidamente”.
A “solução” que gera outro problema
A nova política passou a ser o aprisionamento. De 1990 até 2010, o número de pessoas presas cresceu 770%. Isso acabou por fortalecer as gangues das prisões. O crime organizado passou a atuar no mercado de drogas e a controlar a violência na cena do crime com as carreiras criminais (cargos hierarquizados como aviãozinho, chefe da boca, etc). Paes Manso diz que, ao mesmo tempo em que se tem o efeito positivo de diminuição de homicídios, também foi criado o desafio de lidar com o fortalecimento das facções criminais dentro dos presídios — que, atualmente, mantêm o crime organizado no Brasil inteiro. Hoje, uma das maiores facções criminosas do país é o Primeiro Comando da Capital (PCC).
De acordo com o pesquisador, o PCC passou a gerir e fornecer drogas a todos os Estados do país. As prisões são lugares de aliança. O novo Mapa da Violência 2016 lançado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostra que o Nordeste foi a região em que mais cresceu a taxa de homicídios nos últimos anos. Entre 2004 e 2014, todos os Estados da região tiveram crescimento superior a 100%. A maior taxa é do Rio Grande do Norte: de 11,3 homicídios para cada 100 mil habitantes em 2004, para 46,2 em 2014. Nesses Estados, a polícia passou a agir de forma mais violenta nos últimos anos. “Como aconteceu no Estado de SP nos anos 1980 e 1990, agora está começando a acontecer no Norte e Nordeste — e que eram muito mais pacíficos nesses mesmos anos”, afirma.
Ele também reforça que toda a cena de homicídios que se multiplica, não significa que muitas pessoas estão matando, mas que poucas pessoas matam muitas outras. Existem “hotspots”, locais que são muito mais violentos do que outros. “Algumas pessoas matam muito, e são grupos de matadores, que podem ser desde grupos de vizinhanças, até grupos de extermínios da própria polícia”.
Proposta para novos rumos
O Brasil apostou no aprisionamento em massa para resolver o problema da violência. Mas tamanha violência — como o encarceramento, a falta de diálogo, o estigma social e as situações deploráveis nos presídios — gerou mais violência. “As prisões passaram a ser uma espécie de ‘escritório’ do crime, que permite fazer contatos — como uma pós-graduação na carreira criminosa”, pontua Paes Manso. Ao contrário de apostarmos nesse aprisionamento aleatório de jovens marginalizados socialmente, o pesquisador confia no foco do combate ao homicídio.
“A política pública tem que começar com a capacidade de identificar esses grandes matadores locais e tirar eles de circulação”, assevera. Isso mostraria a vontade do Estado de não aceitar mais os homicídios — independentemente de quem morre ou quem mata. Para tal, é necessário um policiamento focado no problema e nos locais onde ele ocorre. Bruno afirma que essa tática já foi feita em outros países, como EUA e Colômbia.
Políticas de prevenção também são importantes para discutir a cultura do extermínio. Em São Paulo, uma série de grupos, como os de música e religiosos, passou a discutir a violência para trabalhar com a prevenção. O trabalho é feito com jovens em situação de risco, mais vulneráveis a entrar na carreira criminal. “Em outros países, esse tipo de trabalho também é realizado com pessoas que já passaram pelo caminho do crime”, observa Paes Manso. “Eles conversam com esses jovens e criam possibilidades de estabelecer uma visão crítica da carreira criminal”.
Outro ponto é a da recuperação de presos: ela não existe no Brasil. A pessoa volta à sociedade sem qualquer ajuda para recomeçar. Sem trabalho, cercada por um estigma enorme, e já visto como um ex-presidiário, o indivíduo se vê perdido. De acordo com Paes Manso, mais que a metade da Cracolândia é composta por antigos detentos. “É uma forma de a pessoa tocar a vida de outra maneira, mesmo que seja num mundo paralelo”, diz ele.
Hoje, a imprensa tem corroborado para intensificar o medo das pessoas, explorando-o –visível na situação da Cracolândia. O problema da violência não é abordado de forma crítica, mas de forma sensacionalista. Isso só reforça o desejo de punição e de vingança privada, estimulando a violência. Fortalece, inclusive, grupos de extermínio, que se legitimam ao “combater o crime”. “Ainda é preciso avançar muito nessa área por parte da imprensa”, completa.
Impunidade e mortes
A Anistia Internacional acredita que o direito à vida tem dois componentes. O componente material considera que todas as pessoas têm o direito de não serem privadas de sua vida arbitrariamente e o outro é o que requer investigação adequada e prestação de contas sempre que houver algum caso arbitrário. “A falta de apuração e de responsabilização das mortes causadas pelo Estado viola esse segundo componente”, aponta relatório de 2014 da Anistia.
O fato é que o quadro de violência e altas taxas de homicídios no Brasil são agravados por essa impunidade. Isto é, existem falhas nos processos e inquéritos de “homicídios decorrentes de intervenção policial”. Isso alimenta o sistema de mortes arbitrárias e denuncia falhas em todo o sistema de Justiça Criminal (Polícia Civil, Ministério Público e Poder Judiciário). Esse esquema é ainda mais grave quando a morte é registrada como sendo um caso de “resistência”. Em relatos ao relator especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, policiais civis diziam que em casos assim eles supunham que o policial militar estava lidando com criminosos e agiu em legítima defesa. Existe, então, um mecanismo legal que é utilizado para referendar esse tipo de ação policial.
Feito com base nos dados do Rio de Janeiro, o relatório da Anistia Internacional “Você Matou Meu Filho” (disponível no link http://bit.ly/1EDQsSW) poderia facilmente se aplicar à cidade de São Paulo. Aconteceram 14 diferentes chacinas na Região Metropolitana no ano passado e, de acordo com os movimentos sociais e a militância dos coletivos periféricos, foram causados por ações paramilitares da polícia, que utilizaram desse mesmo mecanismo como forma de dar fim a um inquérito. Além da famosa chacina de Osasco, Barueri e Itapevi, locais como Mogi das Cruzes, Vila Jacuí (Zona Leste), Parque Santo Antônio (Zona Sul), Jaçanã (Zona Norte), Tremembé (Zona Norte), Paralheiros (Zona Sul), Vila dos Remédios (Zona Oeste) e Jardim São Luís (Zona Sul) também foram alvos de eventos como esses. E o que todos eles têm em comum? São crimes arquivados ou sem solução que acontecerem apenas em locais de periferia. O relatório enfatiza que “o uso da força por parte dos agentes de segurança pública requer a condução de uma investigação imediata”.
Resistência, direito e estruturas
Segundo o advogado criminalista Vinícius Assumpção, homicídios listados em auto de resistência (documento expedido pela Polícia que atesta situação de “enfrentamento” entre um agente estatal e um cidadão) desembocam costumeiramente em arquivamentos pelo Ministério Público ou pelo Judiciário. Nesse sentido, se ele reflete um acontecimento real ou se dissimula a execução de um civil por um policial, a proteção legal do indivíduo fica atenuada, à mercê do assentimento de instâncias jurídicas superiores, distantes de sua tangência. “Em situações assim, o direito do cidadão é comprometido, porque práticas de eventuais assassinatos são chanceladas por órgãos estatais”, argumenta.
Visando reduzir a impunidade que a justificativa de “enfrentamento” entre agente e civil parece causar, deputados de diversos partidos propuseram em 2012 um projeto de lei que objetiva que “os chamados ‘autos de resistência’ sejam devidamente apreciados pelo Sistema de Justiça”. O PL 4471/2012, que aguarda apenas a apreciação no plenário da Câmara, conta com o apoio de diversas entidades de proteção aos direitos humanos e em 2014 recebeu parecer favorável da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O documento cita diversas falhas nas investigações relacionadas a mortes por intervenção policial no estado. Baseando-se nos 249 casos analisados pelo Núcleo Especializado de Direitos Humanos e Cidadania da Defensoria a partir de 2010, o documento apontou que, dentre outras falhas: constantemente o socorro é prestado pelos policiais envolvidos na ocorrência, em detrimento do acionamento do serviço médico de emergência; a cena do crime não é preservada; as perícias são insuficientemente descritivas; falta diligência por parte da investigação em ouvir testemunhas oculares; em diversos casos, o inquérito policial não é instaurado.
Influenciado pelo Projeto de Lei que corre na Câmara, em janeiro deste ano, o site do Governo Federal trouxe a público a alteração no termo “auto de resistência” para “homicídio decorrente de oposição à violência policial” — mudança que foi acatada pelas Polícias Civil e Federal. Embora ela contenha em si relativa carga simbólica, como observa o professor de Criminologia da Faculdade de Direito da USP, Maurício Dieter, conta-se ainda que a resolução sirva de pêndulo para alterar a estrutura ou pano de fundo dessas instituições policiais, e não que paire apenas como etiqueta sem resultado prático. “Ainda assim”, diz Dieter, “o novo termo proposto segue tecnicamente equivocado, já que não existe a possibilidade de justificar o homicídio com base em oposição à polícia”. A única justificativa possível seria somente, pois, a constatação de legítima defesa.
A estrutura de entidades policiais, por assim dizer, deve permanecer intocável a não ser que o efeito simbólico da alteração seja capaz de remexer as burocracias institucionais. Mas a construção histórica, como se sabe, demanda tempo para ser desarranjada. “Esses autos”, expõe Dieter, “sinalizam a persistência da forma jurídica de racionalização burocrática da morte produzida pelos agentes do sistema de justiça criminal (Polícia, Ministério Público, Judiciário)”, algo que, em seu ver, segue uma lógica acirrada com o regime político instaurado no Brasil em 1964.
A violência como prática institucional não é novidade. A força policial brasileira é a que mais mata no mundo, segundo dados da Anistia Internacional referentes a 2012. Diminuindo a amostra, regionalmente, a Polícia Militar de São Paulo está entre as mais letais do país. Em 2015, por exemplo, de cada quatro homicídios ocorridos na capital paulista, um era fruto do disparate de uma arma militar.
Segundo o estudo “Violência policial em São Paulo – 2001‐2011”, sistematizado pela pesquisadora Viviane de Oliveira Cubas e parte integrante do 5º Relatório nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil do NEV, no período analisado, policiais militares e civis em serviço fizeram 5591 vítimas fatais em “ações de resistência” no Estado de São Paulo.
Repousada no meio social, que encontra nos autos de resistência a sua face mais obscura e desfigurada, a “violência permitida” revela a sua ampla dimensão em analisar as próprias ações policiais. Se, por um lado, atos de execução são promovidos amiúde e frutos dessa estrutura histórica — que tem como pobres e negros suas vítimas preferenciais —, por outro, policiais são apenas a ponta do iceberg. “Um instrumento de controle social que, inclusive, é embrutecido na rotina diária para agir nesse sentido”, como pontua Assumpção. Há sim, segundo ele, uma cultura de violência, mas que não é de gestão exclusiva de agentes estatais, como os que vestem fardas e andam armados. Ela está tácita, “enraizada na população, e é respaldada pelo Estado com ações sistemáticas dos governos federal e estadual”, afirma.