ISSN 2359-5191

16/08/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 103 - Arte e Cultura - Instituto de Estudos Brasileiros
Julia Lopes traz representatividade e modernização para o público feminino leitor
Como a autora influenciou no pensamento feminino da virada no século 20, ocupou um nicho pouco explorado à época e ajudou na modernização das mulheres e da família
Página do livro A Mensageira, publicação da imprensa oficial do Estado de São Paulo que reunia textos femininos de diversas autoras, incluindo Julia Lopes. Fotografia: Carolina Tiemi.

A Academia Brasileira de Letras foi criada com ajuda de mulheres, mas sem mulheres em seus assentos. Menos de 15% das mesas principais da Flip de 2014, evento criado por uma mulher, contavam com a presença de escritoras. O espaço literário sempre foi predominantemente masculino. Quem começa a transformar esse cenário é Julia Lopes, escritora brasileira cujas publicações moveram os estudos da leitura e das leitoras femininas no país, e é objeto de pesquisa de Jussara Parada Amed no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Jussara pretende pautar os problemas de escrever em um país de poucos de leitores, editores e distribuidores, mostrando a escritora como uma das poucas mulheres que conseguiu viver de sua produção escrita em um meio intelectual ainda misógino.

Julia Lopes foi alfabetizada pela irmã mais velha e influenciada pelas ideias do pai, republicano e abolicionista. Cresceu e viveu num ambiente intelectualizado. Porém, enquanto leitora, percebeu que o círculo dos intelectuais brasileiros era muito restrito: num país majoritariamente iletrado, os autores escreviam para eles mesmos e para um pequeno público, muito mais masculino que feminino. E isso não acontecia pela ausência de mulheres leitoras, mas carência de personagens e literatura que pautassem o universo feminino.

Essa foi a primeira grande ação da autora: entender que, no contexto de virada do século, modernização brasileira e aumento dos centros urbanos, há muitos públicos que não são atingidos com a produção literária nacional, como o feminino e o infantil.  Esses nichos muitas vezes recorriam a escritos europeus, com a tradução de livros escolares e de romances, divulgados nos jornais como folhetins. No entanto, era comum que as narrativas pouco se adaptassem à nossa linguagem e realidade.

Dessa maneira, seja por meio da sua temática, seja pelos vocativos como "minha cara amiga" e "minha colega" nos seus textos, ao escrever uma sobre mulheres para mulheres, Julia influenciou no comportamento e no imaginário das brasileiras do seu tempo. Essa ação fez com que leitoras encarassem essa literatura como a um guia, e outras escritoras passassem a assinar com seus nomes verdadeiros e femininos. 

A literatura de Julia Lopes

Em um dos seus artigos, ela ilustra um filho que chega com dúvidas em casa, e explica que a mulher que tem seus horizontes mais ampliados consegue resolver esses problemas melhor do que aquela que se fechou nas suas atividades cotidianas do lar. Jussara Amed faz um paralelo com uma situação comum à virada do século. Com o aumento das invenções tecnológicas e sua disseminação pelas casas brasileiras, algumas ferramentas ‒ ainda que inicialmente assustadoras pelo desconhecimento ‒ poupariam parte do trabalho caseiro da dona de casa, gerando mais tempo para outras tarefas, para sua família e para si mesma, dando qualidade de vida à essa mulher.

Assim eram suas publicações: sem mensagens agressivas ou extremistas. Sua ideia era abrir o leque de possibilidades da mulher da Primeira República para que esta enxergasse mais opções dentro da própria realidade e se desenvolvesse. Faz-se um grande esforço, inclusive, para que as mulheres se modernizassem sem que houvesse uma ruptura do ambiente familiar. É a independência feminina que trazia, consigo, a evolução da família, buscando estender esses valores ao restante da casa.

Capa do Livro das Donas e Donzellas, de Julia Lopes, e o capítulo A Arte de Envelhecer

Fotografia: Carolina Tiemi

Donas e Donzelas, por exemplo, era um livro dado de presente à mulheres prestes à se casar. Nele, há tanto sugestões para questões cotidianas da esposa, como vestimentas e orientações para otimizar os serviços domésticos, como também reflexões mais profundas, como o perfil da brasileira e o envelhecer para a mulher. É um livro ilustrado, com capa de tecido, remetendo ao universo feminino dessa geração na sua forma e conteúdo.

Por outro lado, Júlia também tinha o erotismo na sua literatura, reconhecendo que as mulheres também têm uma sexualidade ativa, algo que não poderia ser dito na época. A pesquisadora a compara a Nelson Rodrigues, por relatar as questões humanas e sua natureza, como o egoísmo, a dor, os desejos e impulsos. A diferença é que o elemento transformador de sua obra é a mulher – seja enlouquecendo e caindo em desgraça, seja se superando e evoluindo.

As leitoras de Julia Lopes

Assunto principal da pesquisa de Jussara, podemos estudar a literata por duas vias: pelas publicações, que se encontram em sintonia com as necessidades das leitoras de seu período, e pelas respostas das suas leitoras, uma vez que há uma mudança no comportamento delas. De início, poucas mulheres respondiam, e as interações só aumentaram quando passaram se envolver nos espaços profissionais e ocupar as ruas. Entretanto, é injusto dizer que as mulheres da época tiveram uma vida apagada – elas estavam por trás dos grandes e pequenos homens urbanos, eram as mulheres que coordenavam as grandes fazendas na ausência de seus maridos, ainda que não fossem intelectuais. Por isso, seus escritos atingiam não somente as mulheres mais modernas, mas também as que se encontravam em casa, na posição de dona do lar, mesmo as iletradas. "Julia sabia que se a mulher não lê, leem para ela, e ela discute com as outras. Então apresentar para suas leitoras diversos aspectos da sociedade era fundamental", diz Jussara.

Assim, existiam leitoras, mas poucas mulheres que produzissem. Esse é um dos motivos pelos quais não existia uma secção grande entre o público feminino como existia no masculino. Nos romances de Julia Lopes, ecléticos e multitemáticos, haviam personagens anarquistas, católicos e ciganos, o que trazia a discussão de assuntos variados para suas leitoras, que não deixavam de lê-la por não apoiar tal vertente política ou religião. Ela trazia, além de conhecimento e pautas para as conversas, representatividade. Em Silveirinha, por exemplo, Julia conta a história de uma moça católica que se casa com um médico. Media, assim, para suas leitoras, todos os valores da Igreja e da Ciência, para que a leitora reflita sobre o discurso religioso e o discurso científico, sem que um lado necessariamente exclua o outro.

Uma parte importante de suas leitoras também era de intelectuais, então, elas se liam, se comentavam e se divulgavam. Assim, nas respostas a publicações desses jornais, essas mulheres ajudavam a montar a biblioteca umas das outras, falando sobre artes, comportamento e de outras autoras, o que ampliava os horizontes da própria escrita feminina, uma vez que essas publicações pautavam questões nacionais e internacionais, como a participação das mulheres na guerra ou um novo aparato tecnológico.

É possível tomar conhecimento das questões femininas através dos textos de Julia, que serviam também para suprir essas demandas. Quando ela escreve sobre o porquê da mulher trabalhar e o tipo de trabalho a ser feito, entendemos a dúvida da mulher da época. E suas queixas também estão lá: o desdém, a violência, a submissão. A autoria, porém, não somente registrava, mas também colaborava para alterar esse cenário, revelando essa situação e ajudando na resolução de problemas ‒ seja por meio de guias, contos ou em seus romances que mostrassem também a união de mulheres para a solução desses e outros problemas.

A Mensageira, publicação da imprensa oficial do Estado de São Paulo

que reunia textos femininos de diversas autoras. Fotografia: Carolina Tiemi

O feminismo de Julia Lopes

"O feminismo dela não é da mulher que se martiriza, é da mulher que age", elucida a pesquisadora. Sua postura em prol das mulheres aparece antes do termo surgir na década de 50 e 60, tornando seus escritos completamente pioneiros e inovadores, influenciando suas leitoras de um modo coletivo, sem necessariamente nomeá-las.

De acordo com Jussara, o trabalho de Julia Lopes transborda as questões de gênero. "Ela também acredita na escravidão como algo a ser superado, do trabalho livre da necessidade dos braços e mentes de todos ‒ brancos, negros, homens, mulheres, brasileiros, portugueses, italianos, para a modernização do Brasil. Ela tem uma consciência social e política, misturando isso quando diz que a mulher deve pegar esse bonde e estar presente nisso ‒ e ela está. Ela tira um véu da história, não só inserindo a mulher e a incentivando, mas também quando a mostra não como vítima, mas como alguém que tem uma ação ‒ a questão é que, pelas tradições, algumas coisas são mais difíceis de se acessar", esclarece.

Teve olhos para captar a mudança das cidades, num contexto da virada de século e modernização brasileira, trazendo a urbanização, a escravidão, a família, a natureza humana e a mulher nos seus romances. Julia Lopes, assim, ajudou a trazer as mulheres à um patamar mais próximo da igualdade e da equidade, representando mulheres no mundo literário tão dominado pelo masculino. Ficaria feliz de saber que a – finalmente – segunda homenageada da Flip deste ano, Ana Cristina César (a primeira foi Clarice Lispector, na edição de 2005), tinha tanta força e fibra quanto ela.

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