Até cerca de duas décadas atrás, as armas de combate ao câncer se sustentavam através de um tripé formado por quimioterapia, radioterapia e cirurgia. A primeira técnica consiste na administração de compostos químicos ao paciente enquanto a segunda visa destruir as células tumorais através de radiações ionizantes. Já a terceira é frequentemente utilizada na remoção de tumores sólidos. Todas essas técnicas possuem méritos comprovados e são capazes de até eliminar qualquer vestígio de células cancerígenas dependendo, é claro, do tipo de câncer e do estágio em que este foi diagnosticado. No entanto, o preço que pagamos por recorrermos a essas armas pode ser muito alto: fadiga, queda de cabelo e vômitos são apenas alguns dos efeitos colaterais provocados pela quimio e radioterapia – verdadeiras bombas sobre as quais temos pouco controle. Como, então, combater o câncer sem sacrificar nosso próprio organismo? Uma resposta para essa pergunta pode ser a biossíntese combinatória e é aí que entra em cena o trabalho do professor Gabriel Padilla e de seu grupo de pesquisadores do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, o ICB.
Precisa, a biossíntese combinatória consiste na utilização de genes que codificam enzimas capazes de realizar delicadas reações químicas que geram novas moléculas com atividade biológica inédita e menor toxicidade. Desta maneira é possível atingir as células tumorais de forma mais específica. Este é o grande trunfo dessa técnica, uma vez que as bombas lançadas pela quimio e pela radioterapia são incapazes de distinguir as células tumorais das células saudáveis. Reduzem-se, portanto, os indesejados efeitos colaterais decorrentes da morte de células comuns que costumam ocorrer nas terapias convencionais.
O laboratório trabalha com microrganismos produtores de compostos bioativos, mais especificamente com bactérias do gênero Streptomyces, responsáveis por cerca de 70% dos antibióticos que utilizamos na medicina humana e veterinária assim como na agricultura e no meio ambiente. Por compostos bioativos entende-se quaisquer moléculas que possuam atividade biológica, ou seja, que provoquem efeitos mensuráveis como atividade antibiótica ou ativação do sistema imune, por exemplo. Tais compostos são sintetizados por agrupamentos gênicos das bactérias denominados clusters e são moléculas muito complexas de serem formadas. Base de muitos coquetéis quimioterápicos, as moléculas do grupo das antraciclinas são os compostos com os quais o laboratório trabalha na tentativa de promover modificações químicas que reduzam seu grau de toxicidade e aumentem sua atividade biológica. O primeiro passo para promover essa modificação, exige o conhecimento do genoma bacteriano e a identificação dos agrupamentos gênicos (clusters). Em seguida os genes são clonados e expressados em outros organismos. Uma vez purificadas as novas moléculas, tenta-se realizar a modificação química.
Colônias de Streptomyces olindensis produzindo o antibiótico antitumoral cosmomicina
Imagem: Gabriel Padilla
Entretanto, modificar essas moléculas com a tecnologia de que dispomos atualmente é um trabalho extremamente complexo e a solução encontrada pela equipe do ICB foi induzir as próprias bactérias a realizarem as modificações. ”A bactéria começa, graças a ferramentas que temos, a modificar a molécula e visualizamos e testamos essas modificações. Primeiro testamos com técnicas analíticas; segundo com atividade biológica em culturas celulares e lá no último passo podemos testar em animais de experimentação”, como explica Gabriel Padilla.
A técnica da biossíntese combinatória aparenta ser promissora, mas ainda está engatinhando. São muitos os desafios para se tratar de modo eficaz os mais de 200 tipos de câncer existentes e, como se não bastasse, cada paciente reage aos tratamentos de maneira distinta. Embora não seja possível trabalhar com previsões acuradas, Padilla afirma que, após 15 anos de pesquisa, o laboratório espera iniciar os estudos em animais de experimentação. Entretanto, a ausência de mais verbas governamentais desestimula muitos profissionais a seguirem carreira em laboratórios e, como consequência, pesquisas dessa natureza são atrasadas em alguns anos.