Emoji: uma nova (e antiga) forma de comunicar

Desde 2004, o dicionário oficial da Universidade de Oxford escolhe a “palavra do ano”, tomando como base seu uso e interesse registrado ao longo dos últimos doze meses. Naquele ano, a escolhida foi “chav” – gíria que nomeia uma tribo adolescente britânica, algo similar ao “mano” paulista. No longínquo 2015, a “palavra do ano” foi esta: ????

Figuras como esta estão em todo o lugar, e desde 2015, cada vez mais pessoas utilizam-nas para se comunicar com amigos, parentes, estranhos nas redes sociais. A sua tia usa, seu priminho novo demais para ter um celular usa e, num dia de bom humor, talvez até seu chefe use.

Mas um emoji pode ser uma palavra? Para a doutora em linguística e professora titular da Faculdade de Letras da UFMG Vera Menezes, trata-se de um recurso visual e multimodal. Ela explica que, mesmo antes da comunicação digital, pessoas utilizavam ferramentas visuais para expressar o que o verbal não conseguia transmitir.

Afinal, não é estranho terminar um bilhetinho de amor com um símbolo de coração, ou entender que o traço acima de uma vogal significa um som mais agudo. “Até quando eu falo com você”, explica a professora Menezes, em um telefonema de São Paulo para Minas Gerais, “eu me pego fazendo gestos com as mãos, apesar de você não estar me vendo”.

Na era pós-moderna, porém, os símbolos e desenhos estão a um toque de distância, no mesmo teclado que encontramos um “A” ou um “?”. A facilidade de transmitir os emojis fez com que a comunicação visual explodisse na era do smartphone, cada vez mais incorporada à linguagem escrita.

Todavia, não é porque usamos ???? que deixaremos de dizer “eu te amo”; seu amigo mais puritano pode respirar aliviado. Vera explica que “a língua não está sendo ameaçada por estes recursos”. Pelo contrário: “eles só enriquecem a linguagem”.

UM SÍMBOLO PARA CHAMAR DE SEU

Em seu acervo fixo, o Museu de Arte Moderna de Nova York, apelidado de MoMA, possui quase 200 mil trabalhos visuais que se estendem das tradicionais pinturas à óleo a espaçosas instalações concretistas. O designer japonês Shigetaka Kurita também marca presença no museu, porém com uma adição incomum.

Ele é o criador do primeiro conjunto de emojis, composto por 176 pictogramas desenvolvidos em 1999 para a empresa de telecomunicações NTT DoCoMo. Para a artista e professora da FAU-USP, Giselle Beiguelman, a presença destas figuras num dos mais cobiçados espaços da arte moderna global revela sua importância como “fatos culturais e reveladores dos processos comunicacionais na nossa época”. 

Nas minúsculas figuras do teclado, a sociedade vê uma representação de si mesma – de seus objetos, expressões e gestos. Mas e quando alguém não se encontra entre os desenhos?

Quando Rayouf Alhumedi, saudita de 16 anos, procurou um emoji para representá-la no WhatsApp, ela não encontrou. Nenhum dos rostos trazia o seu lenço islâmico, o hijab. Então, ela enviou uma carta ao Unicode Consortium – entidade que administra o padrão de reconhecimento de textos por computadores, e também aprova a criação de novos emojis – argumentando por quê aquele símbolo era necessário.

Em 2017, o ícone da “garota com véu” (que, no iPhone, lembra a aparência da própria Rayoud) entrou para o teclado de todos os usuários. Algum tempo depois, Janete Hammoud – brasileira de 42 anos, islâmica e dona de uma loja de vestuário religioso – encontrou a pequena imagem no teclado de seu próprio celular.

“Me apaixonei”, contou, “porque me representa, também uso hijab”. Durante nossa conversa, Janete usou emojis variados, e explicou que eles a auxiliam a se expressar. Fazem, para ela, o papel que teriam as vírgulas e pontos, dos quais não é adepta, e ainda acrescenta uma dimensão emotiva à linguagem que transcende os sinais gráficos mais comuns.

A demora para adicionar, entre centenas, um único emoji que represente sua aparência e a de suas clientes e amigas, é, segundo a vendedora, reflexo do viés que paira sobre sua religião. “Uma carinha legal de uma menina com lenço”, como descreve Janete, não é visto como normal e cotidiano, da forma que seria uma menina de cabelos loiros e compridos ou um homem de boné. Da mesma maneira, sua religião e pessoas que a seguem não são vistos como normais.

A Unicode Consortium e as empresas de telefonia estão cientes da demanda que a era da diversidade trouxe para os emojis. Em março de 2019, veio a notícia de casais interraciais seriam adicionados à gama de símbolos digitais, após casais LGBT ganharem os próprios. 

NASCE UM EMOJI

A vinculação de um emoji a uma causa ou um grupo social pode acelerar seu processo de criação, sendo impulsionado pela opinião pública e mesmo servindo como capital não-financeiro para as empresas de telecomunicações. Mas e quando um emoji tem pouca ou nenhuma causa real por trás?

O cartunista e designer Jason Li é o orgulhoso criador do emoji de lhama. Para ele, foi importante propor novas figuras para livrar a seleção pré-existente do que ele chama de “viés”. Alguns grupos estavam sub-representados, enquanto outros tinham “representação em excesso” (como camelos, ou facas).

A lhama, seu animal favorito, foi sua primeira proposta. Como um assumido “usuário ávido de emojis”, ele descobriu através de uma colega designer, Jenny 8. Lee, que era possível criar seus próprios. Com a ajuda de uma plataforma de amantes de emojis, a Emojination, ele percorreu todo o processo de envio e análise pelo Unicode Consortium.

Ele descreve o desenvolvimento como “bastante direto”, embora haja ruídos no protocolo do consórcio sobre formato das imagens e nos exemplos fornecidos como modelo para as propostas. Li defende que a entidade está “continuamente tentando melhorar e atualizar esse processo, o que talvez gere alguns problemas”.

Podem levar meses até uma proposta de emoji sair do papel e entrar no teclado, e alguns estão parados há anos. Existe, ainda, a possibilidade da proposta ser completamente descartada. Isto pode ocorrer por diversas razões: o símbolo pode ser muito “nichado”, não prospectando um público suficiente, ou ser muito próximo a um emoji já existente.

Todas as proposições são submetidas a um processo de voto, que, em suas mais altas instâncias, tem como membros votantes representantes da Adobe, da Apple Inc., do Facebook, do Google, Huawei, Microsoft, Yahoo e a própria Emojipedia, cuja comunidade ajudou a avançar o emoji de lhama de Jason Li.

Segundo a página oficial do consórcio, atualmente o subcomitê regulador de emojis da Unicode Inc. é chefiado pela diretora criativa dos mesmos símbolos na empresa Google, Jennifer Daniel. Os dois vices são Ned Holbrook, funcionário da Apple, e Jennifer 8. Lee (que inspirou Li a criar seu próprio emoji. É um mundo pequeno).  

No entanto, a Unicode Consortium existe há muito tempo, e padroniza e administra emojis há muito menos. “Acredito que eles estão conseguindo compensar o tempo perdido, e estão fazendo um grande, louvável esforço”.

O EMOJI É POLÍTICO

Se nossos emojis simbolizam mesmo o que pensamos como sociedade, não apenas a diversidade que está em pauta. A ideologia por trás de um emoji também.

Na disputa eleitoral de 2018, figurinhas carimbadas da política brasileira tiveram um embate sobre este símbolo: ????. Ele foi relacionado à imagem do então candidato Jair Bolsonaro na campanha do adversário Geraldo Alckmin, que se valeu de recursos da Internet em sua propaganda televisiva.

A defesa de Bolsonaro processou Alckmin, alegando que ele violou o Código Eleitoral ao atentar contra a imagem de Jair e “criar artificialmente estados mentais, emocionais ou passionais no eleitor”. Perdeu, por unanimidade. 

O relator do caso, ministro Carlos Horbach, caracterizou o emoji como uma “crítica forte e ácida, expressa não em palavras, mas por sinais gráficos”. 

Os símbolos voltaram a posar como crítica política quando, numa manhã de terça-feira, São Paulo amanheceu com dois emojis representando fezes, com 4 metros de altura cada, boiando no rio Pinheiros. 

Cerca de 50 políticos paulistanos também receberam a figurinha em forma de almofada em seus gabinetes, junto a um pedido de socorro. A ação foi realizada pelo publicitário Marcelo Reis, como parte de um movimento recuperação do rio: o #VoltaPinheiros.

Mais do que expressar a emoção cotidiana, os recursos visuais que a tecnologia trouxe mostram que, na era do textão, é possível condensar parágrafos inteiros de crítica em, simplesmente, ????.

Pautas sociais e políticas também podem não apenas apropriar-se de emojis para comunicação publicitária, mas também voltar-se contra eles. Um exemplo é a campanha #DisarmTheIphone (em tradução livre, Desarme o iPhone). 

A premissa da hashtag, utilizada em 2015, era simples: pressionar o CEO da Apple, Tim Cook, a alterar o design do emoji de pistola, que, até então, exibia um desenho realista de uma arma de fogo. 

Para os criadores do #DisarmTheIphone, estagiários num programa de treinamento em publicidade na agência BBH Barn, a ação era uma maneira de disseminar e pedir apoios corporativos à restrição do porte de armas nos Estados Unidos.

Apesar das críticas àqueles que consideraram o movimento “inútil” ou “exagerado”, a marca de fato substituiu o design do símbolo, passando a adotar uma arminha infantil, carregada com água, no lugar da arma de fogo. Dois anos depois do fim da veiculação de materiais de campanha da #DisarmTheEmoji, o pictograma foi atualizado nos celulares iPhone por todo o mundo.

Quase que ao mesmo tempo, na Rússia, outros emojis eram postos sob a mira de movimentos ideológicos. Amparado pela legislação homofóbica do país, um senador russo prestou queixa pública contra emojis que representavam a diversidade sexual. 

Mikhail Marchenko, membro do partido de extrema-direita Liberal Democrata, pediu para que os mecanismos estatais de controle da comunicação extinguissem da linguagem digital russa símbolos como o que mostra duas figuras femininas iniciando um beijo, com um coração cor-de-rosa entre elas. 

Pela lei russa, é passível de multa qualquer internauta que promover “relações sexuais não tradicionais” ou opor-se a “valores familiares” em suas postagens. No entanto, bloquear um emoji totalmente é mais difícil do que alterar a representação gráfica dele, como feito na pistola da Apple: a padronização do Unicode Consortium garante que, apesar de utilizarem diferentes designs, todo teclado de qualquer sistema operacional tenha e reproduza os mesmos símbolos.

UM EMOJI, VÁRIOS SIGNIFICADOS

A comunicação verbal não é isenta de ruídos, e a semântica prova que sua escolha de palavras pode gerar leituras diversas do interlocutor. Quando se escolhe um emoji, não é diferente.

Um exemplo corriqueiro é o mesmo emoji escolhido como “palavra do ano” por Oxford em 2015. Como, no teclado digital, temos acesso apenas a uma pequenina representação gráfica e não ao título oficial dos símbolos, o emoji que significa “LOL”, ou “laughing out loud”, ou ainda “rindo à beça”, é visto por muitos como um choro.

O ex-redator do Buzzfeed Rafael Capanema colheu exemplos desta confusão numa lista publicada em 2018, intitulada: “ATENÇÃO, PAIS: o ???? não é um emoji de tristeza”. Uma verdadeira aula de linguística, a publicação de humor também revela quem nós esperamos que seja mais propenso a errar seus emojis: usuários mais velhos, menos adeptos à tecnologia.

Voltando à campanha de 2018, a UOL Tecnologia levantou as carinhas mais utilizadas por eleitores de Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (então PSL), candidatos do segundo turno da eleição presidencial. As diferenças de pauta e abordagem de cada base eleitoral se mostravam até pelos emojis preferidos, com cada um ganhando um significado especial, e até poder argumentativo

Um simples gesto como este ???? poderia fazer alguém que apenas queria apontar algo à direita no texto ser visto como bolsonarista, por exemplo. No entanto, as diferenças de significado para cada emoji vão além da política.

A dra. Vera Menezes aponta que, como qualquer linguagem, há variações culturais nos símbolos. O mesmo símbolo pode ser apropriado por diferentes grupos e ressignificado diversas vezes, como já acontecem com as palavras. 

ACESSIBILIDADE

Tal multiplicidade de significados, no entanto, é gravemente desidratada quando consideramos aqueles que não conseguem, de fato, vê-los. Consideremos pessoas com deficiências visuais: para ler emojis, assim como caracteres do alfabeto, este grupo frequentemente depende de teclados do modelo “text-to-speech”, que leem em voz alta, mecanicamente, o que está escrito.

Mesmo os emojis são transformados em fala. Para isso, a cada símbolo, é designado somente um nome, que representa o significado original do emoji. 

Veronica Lewis, uma estudante de ciência de dados moradora da Virginia, no sudeste dos Estados Unidos, compartilhou suas experiências com emojis em um texto de 2018. Publicado na plataforma de aprendizado Perkins School for the Blind, o relato demonstra que ainda há muito a avançar na acessibilidade dos pequenos símbolos.

Lewis explica que, como portadora de baixa visão, ela pode escolher utilizar uma lupa eletrônica ou lente de aumento para visualizar os emojis, ou traduzi-los para texto oral pelo teclado text-to-speech. “Por exemplo, se um amigo me mandar uma mensagem com um ???? no final, meu leitor vai ler a mensagem e então o emoji como ‘coração amarelo’”, diz. “Num exemplo mais frustrante, se meu amigo me enviar cinco emojis de ‘bolo’, o leitor deverá ler ‘bolo bolo bolo bolo bolo’.”

A estudante também pode mandar seus próprios emojis, porém o processo não é infalível. Para selecionar um símbolo, ela deve falar em voz alta o nome do emoji que deseja digitar. Porém, nem sempre o teclado entende que deve substituir tal expressão pelo emoji; os amigos de Veronica podem receber, em vez de um ????, a frase “coração amarelo”.

Caso ela visite uma rede social como o Twitter, onde é possível adicionar emojis ao seu próprio nome de exibição e enviar vários em sequência a cada tuíte, a comunicação pode ser seriamente prejudicada. Experimente abrir sua linha do tempo e ler, em voz alta, tudo que aparece na tela – inclusive os emojis. Você poderá sair do site com uma bela dor de cabeça.

Para aqueles com amigos ou colegas com baixa ou nula visão, uma boa pedida é ficar atento a como ele ou ela se comunica. Caso você não receba mensagens dele ou dela com emojis, talvez seja sinal de um certo desconforto com o recurso. O melhor é praticar moderação.

Por Juliana Santos
jusantosgoncalves@gmail.com