Muito tempo para quem pouco tempo tem

A vida passa mais devagar na pacata cidade de Campanário, encravada ao norte de Minas Gerais, próxima ao Vale do Mucuri. Por lá, seus 3.757 habitantes tocam a vida bucólica que, para muitos moradores de metrópoles, é mais um retrato de livros do que uma realidade.

Ali, tudo gira em torno de serviços quase que auto-suficientes: os comerciantes vendem para os moradores locais e compram de outros comerciantes. Além de poucos funcionários públicos, que entram na roda dos gastos públicos que descem de Brasília ao Brasil autóctone, há também alguns aposentados e pensionistas, que respiram ar fresco e vivem bem, numa vila onde o custo de vida é baixo.

É isso que logo ressalta Paulo Esteves, 95 anos, enquanto atende à reportagem na padaria do Supermercado Silva, que para ele é a ‘venda de Gonzaga’. “Veja bem, com essa nota em Brasília, onde mora minha neta casada, mal compro um refresco. Aqui faço fartura”, brinca, enquanto segura cinco reais.

Paulo recentemente teve sua primeira bisneta, Clara, que ainda não pode ver. Em quase cem anos de vida, há de tudo um pouco, e sua trajetória é quase um condensado de história do maior país da América do Sul. Com apenas o ensino básico, se formou na vida, sendo tropeiro — espécie de condutor do rebanho de uma fazenda a outra —, fazendeiro e, principalmente, comerciante. A matemática que não vira na escola de pau a pique em Dores de Guanhães, entretanto, veio até ele no que os coaches atuais chamariam de “mentoria”.

“Ele me deu tudo à época. Entrei com 14 anos na venda, era ajudante geral. No fim, saí para me casar e ainda recebi 20 mil cruzeiros (cerca R$ 18 mil, em valores atuais) de acerto. Além disso aprendi de tudo um pouco para fazer minha vida”, comenta Paulo acerca de seu antigo patrão e quase-pai, Juquita Barbosa.

Da infância severa e sem luxos, o mineiro foi direto à realidade dura, sisuda, e acabou conquistando sua prima Maria das Dores, que o acompanha num matrimônio de 65 anos. “Sofria um pouco de resistência pelo fato d’eu ter completado o magistério, que era até onde uma moça ia na época, e ele ser de trabalhos braçais, mas o que importa é como sempre fomos companheiros”, realçou Dasdores, como é apelidada.

Seu nome homenageia Nossa Senhora das Dores: uma das variantes da mãe de Jesus e que, normalmente, têm mais de uma faca cravada em seu peito, simbolizando a dor de ver o filho morto. Tal como a homenageada, Maria teve suas facas: dos oito filhos, quatro faleceram. Uma semana antes da reportagem, cumpriram a rigorosa rotina de depositar flores no túmulo das duas meninas, que jazem no cemitério da cidade.

A primogênita faleceu num acidente de carro em 1979, aos 25 anos. De acordo com uma das irmãs vivas, o baque nos chefes da família foi imenso. “Era comum voltarmos da escola felizes, tentando curtir nossa juventude alheias à tragédia. Quando chegava em casa via mamãe ao lado de sua amiga, Teresa Najar, tomando novalgina reclamando de dor no corpo. Hoje compreendo que era uma manifestação psiquiátrica de luto agudo, numa época onde depressão era tabu”.

Ironia da vida, o casal só superou o luto quando uma das caçulas, Renata, apresentou um tipo raro de câncer aos quatro anos, por volta de 1982. Quatro anos de sofrimento depois, o “anjinho descansou”, comenta a mãe, relembrando que sua gêmea bivitelina, Patrícia, segue viva e saudável, morando na cidade de Governador Valadares.

Até então, Paulo só sabia trabalhar, era tudo que havia aprendido. Na década de 1970, com já quase 30 anos de carreira, sua fazenda prosperava, e a loja de “secos e molhados” fornecia todo o tipo de gêneros alimentícios à cidade. O luto, entretanto, fez com que acumulasse dívidas, perdesse a mão em diversos planos e, por fim, se aposentasse, sem grandes posses, nos anos 90.

Os outros dois filhos que foram mais cedo são Marcílio, natimorto em 66, e Marcelo. O último é, por si, outro recorte de fenômenos sociais locais: emigrou aos Estados Unidos ilegalmente em 2001 e retornou em 2007. Trabalhando muito e comendo mal, desenvolveu obesidade mórbida. Logo após realizar o sonho de ser pai e adotar um filho junto à esposa, se submeteu a uma cirurgia bariátrica, da qual sofreu com complicações e morreu, em 2010.

Valadares, com 260 mil habitantes, é a oitava cidade do Brasil em número absoluto de cidadãos no exterior, a maioria nos EUA. O fenômeno se estende a toda região, e até um caricato outdoor em apoio a Donald Trump podia ser visto à beira da BR-116, que liga as duas cidades.

Foto: Eduardo Passos

Hoje, entretanto, a vida de Paulo é mais estável do que nunca. Ainda com anacronismos de seu tempo, se orgulha das quatro filhas vivas “que nunca desquitaram”, tem sua casa ampla e aposentadoria somada à companheira de vida. As filhas ajudam com algumas despesas, incluindo uma nova televisão, com som mais potente, que pudesse ser ouvido pelo idoso, que usa um aparelho auditivo de R$ 5 mil a unidade. “Doado pelo SUS”, explica Maria das Dores.

Ainda que lúcido, Lim, como é chamado pelos vizinhos, demonstra certa dificuldade em compreender o uso de máscaras, conceitos como isolamento social e os inúmeros gráficos, termos e siglas que aparecem no noticiário — assistido tão religiosamente quanto o terço das 17h.

A ansiedade de um homem de 95 anos, vendo quase um ano inteiro dos poucos que lhe restam, é mais evidente, e é difícil entender que essa doença “é estranha às outras”.

Em 1944, o soldado Esteves, 19 anos, servia na 4ª Região Militar do Exército, e seu destino estava selado: iria à Itália, onde lutaria contra os nazistas na frente sul da Segunda Guerra Mundial. Seus pais, que temiam buscá-lo em um caixão no Rio de Janeiro, entretanto, foram até a rua Conde de Bobadela, em Ouro Preto, buscar o filho que sofria com tifo. Sem vaidades, Paulo afirma que foi “café pequeno”, mas, contrariada, sua esposa rebate: “naquela época chamavam os pais meio que para entregar o filho para cuidados mais intensos. Ele ficou mal”.

A impaciência para entender normas, ondas, bandeiras, relatórios é evidente. Ao entrar no supermercado, por exemplo, o atendente pede o pulso do ex-soldado para medir sua temperatura. Contrariado, entrega a mão e nem olha. Logo depois, a esfrega como se ali houvesse álcool em gel.

Planos interrompidos

Ainda que, em teoria, a morte devesse representar algo bom aos cristãos, um reencontro com o Pai, Paulo usa de eufemismos para tocar no assunto. Diz que não pensa em “quando não estará aqui”, mas reforça que gosta de viver e que, após décadas de luta, a estabilidade é mais do que saborosa.
A Covid veio para atrapalhar seu plano de ir à Basílica de Aparecida, ao lado da filha Ana, e de visitar a bisneta, em Brasília. A mesma Covid impediu que visse seu cunhado, Antônio Augusto, desenvolver doença de Alzheimer fulminante, que deteriorou-lhe em poucos meses. Talvez rindo para não lamentar mais faca em seu coração, Maria das Dores se diverte ao contar que, após sete meses distantes, os dois se encontraram no aniversário da esposa de Antônio, Helena. “Obviamente ele não reconheceu o Paulo, que ficou injuriado por não ter sido cumprimentado”, brinca, sabendo que não adianta explicar a complexidade da bainha de mielina a quem poucas vezes foi além de sua terra.

No início, as filhas do casal se revezam para fazer companhia aos pais, que tinham rotina ativa na cidade. Idas ao supermercado, à feira, ao banco; tudo foi substituído por 24h de isolamento, olhares distantes no portão e, no caso dele, uma sensação de não entender muito bem o porquê disso tudo.

Por fim, a solução encontrada para passar o tempo foi reformar a casa que habitam desde 1964, trocando portas e pintando muros. A nova TV também pediu um novo móvel, feito sob medida para acomodá-la junto ao presépio natalino, já armado. Cada um dos funcionários que entrava na casa era aconselhado pelas filhas a usar máscara o tempo inteiro, já que a pacata cidade vinha em aumento de casos, totalizando 161 contaminados e cinco falecidos.

Um desses foi um antigo vereador da cidade e amigo de Paulo. O velório foi realizado com caixão aberto na Câmara Municipal, e ele aproveitou o descuido das filhas para prestar sua despedida. Dias depois do velório, foi constatado que a causa mortis foi o Sars-Cov-2. “Só por Deus. Talvez não fosse a hora dele”, respira aliviada sua filha.

A segunda onda de contaminação na cidade, puxada pelo agravamento na vizinha Teófilo Otoni, causava apreensão em todos da casa, que, além de exaustos, também não sabiam como segurar mais o idoso em casa. Para evitar que ele sobrevivesse à síndrome gripal mas padecesse à tristeza, a solução foi flexibilizar idas pontuais à igreja e ao supermercado, “em horários mais vazios”.

A Catedral fica no alto de um imenso morro, e mesmo os mais atléticos não conseguem alcançá-la a pé sem suar bicas. Assim, peço para acompanhar Esteves e sua neta Lígia, estudante de Odontologia na UFMG, numa ida para ajoelhar-se diante do altar.

Chegando ao local, Paulo, que mede cerca de 1,70 m e pesa mais de 80 kg, salta firme do carro, ignorando solenemente as máscaras. A neta logo percebe uma pequena concentração na porta do templo, incluindo a capelã. “Jozinha, meu avô ‘tá’ subindo a escada sem máscara. Fala com ele, pelo amor de Deus, que não pode entrar sem máscara. Me ajuda nessa”, suplica. Jozinha, que há mais de 50 anos vive num quarto anexo ao seminário franciscano da cidade, não entende a ironia: “relaxa, ‘fia’, pode entrar sem isso sim”, responde, arrancando uma leve gargalhada do repórter.

Daqui pra frente

Conhecido da família através de um amigo em comum, peço permissão para dormir na casa. É credencial suficiente para vencer a desconfiança mineira. No dia seguinte, aproveito para levantar junto a Paulo, que costuma se guiar pelo sol em muitas de suas atividades.

Digo a ele que pretendo retornar a Ipatinga, onde mantenho estrito isolamento, por volta das 10h. “Não fale isso, senão 7h ele já estará te importunando para se aprontar”, diz a filha que me ‘assessora’ na visita. “Em sua época de tropeiro, muitas vezes havia um transporte por semana a determinadas cidades. Por isso ele sempre teve o hábito de agir com extrema antecedência com tudo. Se houvesse um imprevisto e perdesse o caminhão, por exemplo, era prejuízo para o mês inteiro”, completa.

Foto: Eduardo Passos

“Seu Paulo, me confundi. Óbvio que ficarei para almoçar”, me retifico, sendo aconselhado a não comer muito para não pegar estrada com sono. “Para de ser mandão. ‘Tá’ achando que mora em Aramirim ainda?”, brinca a esposa, lembrando a cidade onde moravam no auge da prosperidade.

No dia seguinte, é domingo de eleição. Levanto junto ao Sol — e Lim — e tomamos café no quintal. Ele, que já foi getulista e udenista, hoje sofre ao ver candidatos de direita dominando o cenário político. “Pego todos os meus remédios de graça, em dia, na farmácia”, cita, para reforçar seu ponto. A família é toda de esquerda, com exceção de dois cunhados, completa.

Penso em perguntá-lo sua visão de vida, mas reflito e chego à conclusão de que, quando Paulo Esteves tinha a minha idade, a televisão não existia no Brasil, a Europa catava os cacos da Segunda Guerra e Eurico Gaspar Dutra despachava como presidente do Brasil no Palácio do Catete, Rio de Janeiro.

Enquanto o mundo girava a milhão, Paulo viveu uma rotina de idas e voltas na região do Mucuri. Suas preocupações sempre foram garantir uma vida confortável às filhas (e aos netos, que faz questão de adular), proteger a esposa e agir conforme os ensinamentos do mestre Juquita, que sempre ensinou-lhe a agir com discrição, “como homem criado”.

Essa mesma discrição é com a qual leva o suave desespero de ver seu 95º ano ser ‘jogado’ fora, à espera de uma vacina. Ele sabe que há algo errado, apesar de se mostrar confuso toda vez que um não-mascarado cruza sua rua. Acima de tudo, ele não vê a hora de terminar de viver. “Ano que vem se Deus quiser você volta. A cidade é muito bonita, quero te mostrá-la com calma”, se despede, após um almoço à base de feijão tropeiro, frango e arroz. No fogão à lenha.

Por Eduardo Passos / Eduardopassos@usp.br