As faces da violência: homicídio de mulheres trans aumenta 70% em 2020

Na quarta-feira, 11 de novembro, Ester Vogue completaria 34 anos. Apesar de encontrar-se em situação de rua, vivendo no centro de São Bernardo do Campo, ela talvez tivesse motivos para celebrar o dia de seu nascimento: a travesti, que antes era conhecida como Tiago, estava em processo de transição de gênero e havia adotado recentemente a identidade de Ester, como relatado por amigos próximos.

Ester, porém, não teve chance de completar sua transição de gênero. Na manhã do dia 08 de novembro, ela foi brutalmente atacada e queimada viva na rua Marechal Deodoro, onde vivia. Segundo a polícia, o atentado aconteceu após um suposto roubo sofrido pela travesti por uma mulher ainda não identificada. 

Pessoas no local chamaram o SAMU e ela foi levada até o Hospital e Pronto Socorro Municipal, onde foi acionada a Casa de Passagem, um centro de acolhida que prestava assistência à Ester. Só então a família veio a ser contatada. 

As informações foram fornecidas por Symmy Larrat, coordenadora da Casa Neon Cunha, outra instituição voluntária que oferecia suporte à Ester. Em atuação desde 2018, a casa trabalha junto à população LGBTQIA+ da Grande São Paulo e na região do ABC Paulista.

Mesmo o socorro não foi suficiente para poupar Ester. Dois dias depois, às vésperas de seu aniversário, ela não resistiu aos ferimentos, que atingiram cerca de 45% de seu corpo. No dia de seu aniversário, Ester foi velada por familiares em Carapicuíba, outra cidade da Grande São Paulo. 

De acordo com informações repassadas pelas autoridades à Revista Fórum, um homem de 25 anos e uma mulher de 30 são investigados pelo crime. Iniciada por uma discussão e seguida pelo roubo, a morte aconteceu após o casal jogar querosene e atear fogo em Ester. “Ao que tudo indica, [a investigada] já era uma pessoa que vinha tendo brigas constantemente. Pelo que eu soube através da família, essa pessoa se evadiu e a polícia não estava conseguindo encontrá-la, mas é alguém que já responde a outras questões”, aponta Symmy, que também é presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). 

Travesti, negra e em situação de rua, Ester recebeu o apelido de Tiago Vogue por se aventurar no vogue, um estilo de dança conhecido no meio LGBTQIA+, que imita movimentos de modelos da revista de moda de mesmo nome. Na Casa Neon, ela é lembrada pelas performances e pela alegria que irradiava em seus eventos. 

O crime cometido contra Ester não é um caso isolado e tem nome: é o transfeminicídio. Assim como o feminicídio, ele é configurado pelo assassinato de mulheres trans (travestis, transexuais e transgêneros) em virtude de suas identidades de gênero.

Estatísticas escancaram um crime ignorado pela lei

Por não ser um termo reconhecido pelo Código Penal Brasileiro e pelo governo, não há estatísticas oficiais sobre o transfeminicídio. No caso de outro crime semelhante, o feminicídio, desde o início da quarentena, em março de 2020 — período em que o isolamento social foi decretado para impedir o avanço da covid-19 no Brasil —, foi ampliado o debate sobre a posição vulnerável que mulheres que sofrem por violência doméstica estariam condicionadas em função do lockdown, quando a recomendação oficial era de que ninguém saísse de casa. 

Assim, deu-se início a campanhas, nas redes sociais e em várias regiões do país, que chamaram a atenção para órgãos de proteção a essas vítimas. Apenas em São Paulo, de acordo com o Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi), o número de atendimentos deste tipo cresceu 70% em relação ao ano passado.

Os casos de feminicídio não sofreram variações significativas: o Brasil registrou 497 mortes desde março, contra 527 no ano anterior. No estado de São Paulo, dados da Secretaria de Segurança Pública mostram que de março a agosto de 2020 foram 77 feminicídios, dois a menos do que em 2019.

O mesmo não aconteceu com o transfeminicídio. De janeiro a agosto deste ano, 129 mulheres trans e travestis foram assassinadas no Brasil. Os dados, que fazem parte do quarto boletim da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), mostram que o número de casos já é 69,7% superior ao registrado nos doze meses de 2019, quando ocorreram 76 mortes.

Só em São Paulo, onde Ester foi brutalmente atacada, foram 19 casos. Desde 2017, quando a Antra começou a coletar os dados de assassinatos de pessoas trans, o estado lidera o ranking nacional.

A travesti se enquadra ainda em outra estatística do boletim: do total de vítimas, 82% são pretas e pardas e mais de 80% sofreram assassinatos com marcas de crueldade.

Medidas emergencias não alcançam transgêneros

Mesmo as medidas de caráter emergencial adotadas pelo governo para mitigar os efeitos sanitários, econômicos e sociais da pandemia de covid-19 não alcançaram o público trans. 

Ainda segundo a Antra, “a maioria das travestis e transexuais não conseguiu acesso às políticas emergenciais do estado, devido a precarização histórica de suas vidas, e não possuem outra opção a não ser continuar o trabalho nas ruas, se expondo ao vírus e consequentemente a violência transfóbica”.

No Brasil, a fonte de renda de 90% das mulheres trans é a prostituição. A associação acredita que mesmo os números reunidos por eles — 129 assassinatos até o dia 31 de agosto — podem ser ainda maiores na realidade.

“Os dados não refletem exatamente a realidade da violência transfóbica em nosso país, uma vez que nossa metodologia de trabalho possui limitações de capturar apenas aquilo que de alguma maneira se torna visível. É provável que os números reais sejam bem superiores”, complementa a instituição.

Agressões dentro de casa motivam ida às ruas

Symmy, que também coordenou a implementação do programa Transcidadania na cidade de São Paulo, aponta que muitas pessoas trans estão em situação de rua ou prestes a cair nessa condição. “A Casa Neon quer ser um espaço físico que vai abrigar pessoas com perda de vínculo familiar, mas, enquanto a gente não tem essa estrutura, ajudamos como podemos. Por enquanto, temos distribuído coberta e alimento para a população de rua, e cestas básicas para pessoas LGBTQIA+”.

A presença deste grupo nas ruas também pode ser explicada pela violência de gênero. Assim como para as mulheres cisgênero, a própria residência é o lugar mais perigoso para as trans. Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan, do Ministério da Saúde), compilados pelo Mapa da Violência de Gênero, entre os anos de 2014 e 2017 cerca de 49% das agressões a esse grupo foram cometidas dentro de casa. 

Como apontado por Symmy, isso também explica o crescimento no número de pessoas trans nas ruas das grandes cidades, já que “as pessoas em situação de rua têm família, mas em geral elas não têm vínculo com a família”. Dados do censo da prefeitura de São Paulo apontaram que a população de rua da cidade chegou a 24.344 pessoas em 2019 – um aumento de 53% em relação a 2015. Destas, 386 são trans. 

No Brasil, legislações como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) e a Lei do Feminicídio (Lei nº13.104) podem também atender mulheres trans e travestis. Contudo, no país que mais mata pessoas não-cisgêneras no mundo – em que a expectativa média de vida de um transexual é de apenas 35 anos — não há como garantir, muitas vezes, a aplicação de leis específicas nestes casos. 

Segundo Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra, essas legislações têm um papel fundamental e cumprem um dos pilares importantes das políticas públicas, que é o fator educativo, e pautam discussões no campo social para que a sociedade entenda o que é violência doméstica e transfobia. 

Por Giovanna Jarandilha e Larissa Vitória / giovannajarandilha@usp.br / santos.larissav@usp.br