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A hora de ouro

 

Por Ana Carolina Leonardi

 

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A atmosfera do horário de pico é, em grande parte, sonora. Motores roncam, gerando energia mesmo que os carros não avancem um centímetro. As buzinas também são frequentadoras eventuais do cenário. Parecem expressar o descontentamento dos motoristas impotentes, mas não se destinam a ninguém específico. Entre carros congestionados, não há culpados, só vítimas.

A sinfonia do tráfego passa despercebida pelos ouvidos, que se acostumam rápido. Mas o corpo reage, alerta, como em uma cena de guerra. Um som, porém, se destaca, um grito que aflora da massa monótona. A sirene vermelha desperta os olhos mesmo na constelação de faróis acesos. Exclama perigo e exige passagem em meio à cena intensa e imóvel.

A visão da Estrela da Vida, símbolo da emergência médica, muitas vezes gera aflição, mas não movimento. Para o pedestre que vê o resgate ao longe, talvez paire uma onda de estranhamento, ao ver estático o veículo da qual depende o ritmo da vida de outra pessoa.

A posição do motorista à frente da ambulância é menos passiva, mas nem por isso menos angustiante. “Pouca margem de manobra” deixa de ser metáfora. Há ainda a incerteza do que é permitido e o que é contra a lei para abrir caminho ao resgate.

Dentro da viatura, o tempo passa de trás para frente. A ocorrência marca o início da chamada Hora de Ouro. Receber o tratamento definitivo na primeira hora depois de um acidente traz maiores chances de sobrevida.  O desafio é acomodar a chegada no local, o atendimento e o transporte ao hospital nesse tempo. A recompensa é um melhor prognóstico. E o antagonista constante é o trânsito.

Há 15 anos, esse turbilhão é rotina para Gisele Rossi. Ela é enfermeira da tropa de elite do atendimento médico a desastres, o Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências. No quartel da Casa Verde, os bombeiros brincam sobre sua nova cor de cabelo. A intimidade vem de um longo tempo de trabalho lado a lado: eles tripulam a Unidade de Resgate e os enfermeiros e médicos, a Unidade de Suporte Avançado (USA).

O tormento de Gisele nas viaturas travadas é o rádio, que anuncia a gravidade de casos que ela é capaz de socorrer, mas não consegue alcançar. O Mar Vermelho de carros se abrindo perante o resgate é uma raridade. Na maior parte dos dias, impera a inércia do lado de fora.

“O trânsito é sempre um vilão no resgate”, ela afirma. Mas é difícil apontar um caso específico que traz indignação contra o problema. Não é que o assunto não tenha importância: mas quando se mata um leão por dia, já se sabe o tamanho e a força do animal. O que importa é a forma de combatê-lo.

A praticidade toma o lugar da emoção na luta contra o congestionamento. A questão não é o quanto se sofre com o problema, e sim as estratégias para combatê-lo. Como um ferreiro que trabalha a marteladas, o trânsito paulistano molda o serviço de resgate à sua maneira. Adequou as USAs à sua imagem e semelhança: há 6 anos, as ambulâncias foram trocadas por viaturas rápidas. Menores, se deslocam com mais fluidez. Não transportam o paciente – depois de atendê-lo e encaminhá-lo ao hospital, se dirigem à próxima vítima, para fazer valer ao máximo a mais uma Hora de Ouro.

Se a vivência diária da pressão e da pressa amortecem a percepção da intensidade do trabalho, nem por isso a adrenalina do serviço é ignorada. Faz parte, até, de um “quê” sedutor da tarefa. “Na Marginal Tietê, você pega um carro. A 100 km/hora. Na contramão. Nunca vai haver uma sensação dessa em outro trabalho. A gente vai para as cabeças. Pegar veia, entubar os pacientes, fazer uma pequena cirurgia. Isso no chão, na rua”, Gisele relata.

O descontrole das emoções é o grande inimigo da precisão decisiva do ofício. Com a experiência, a concentração supera e suprime as outras reações para garantir o sucesso da tarefa. Se soa como se o atendimento fosse feito em piloto automático, nada mais ilusório. As consequências de trabalhar entre o limite da vida e a morte são só adiadas. O impacto emocional vem à tona depois. O equipamento fica no quartel, mas algumas histórias voltam para casa, invadem o pensamento. “Falam que somos frios. Não é frieza. Talvez seja uma carga de maturidade e de controle que permite fazer o que é preciso. Depois você até desaba. Mas naquele momento, alguém tem que fazer, e somos nós”.

Mesmo que as marcas do dia anterior não tenham ainda desbotado, o dia seguinte chega atropelando com suas novas demandas. E em mais uma manhã que começa no quartel, a atmosfera, como no horário de pico, também é sonora. É a expectativa do soar do alarme e do chamado do rádio. É a sirene que rasga o silêncio. São Paulo chama, e ela não é das cidades mais pacientes.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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