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A reflexão tomou cicuta

 

Por Sérgio Rodas Borges Gomes de Oliveira

 

socrates

A tecnologia do século XXI é exuberante. Se eu descrevesse invenções como o telefone, o computador e a internet a meus colegas atenienses, eles diriam que eu estava louco e querendo desestabilizar a vida da cidade. Bom, eles diziam isso de mim de qualquer forma. Porém, impressiona-me como os homens e mulheres desperdiçam tantas facilidades!

 

Ah, sou o Sócrates. Sim, o velho filósofo. Vós devem estar vos perguntando como estou escrevendo esse texto, uma vez que morri há 2414 anos. Bom, isso prova que estava certo sobre a imortalidade da alma. Lembrai-vos: pouco antes de me suicidar, eu afirmei aos meus amigos que o espírito permanece após o fim da vida, e nesse estágio finalmente atinge o pleno conhecimento.

Dessa forma, tenho assistido ao desenrolar da história de camarote desde então. Fiquei maravilhado com o salto tecnológico ocorrido no fim do século XX e início do XXI. O computador facilitou o armazenamento de informações e a transmissão delas aos outros. Com a internet, essas possibilidades foram multiplicadas, e o saber ficou acessível a todos à distância de alguns cliques. Além disso, ferramentas como e-mails e redes sociais construíram pontes entre as pessoas, acabando com abismos comunicacionais. Com a última evolução do telefone, o smartphone, tais facilidades passaram a estar disponíveis 24h por dia.

 

Deveríais estar comemorando essa mudança de paradigma. No entanto, de uns tempos para cá, fui percebendo que, devido a essas inovações, vós estão esquecendo do meu principal ensinamento: o de que a autoexploração, o conhecimento de ti próprio, é a única forma de compreender a vida em sua plenitude.

 

A hiperconectividade está acabando com o silêncio, com o exercício da autorreflexão. Vós não sabem mais ficar quietos, pensar a vida, suas contradições e seus mistérios. Quando param, logo sacam vossos celulares para enviar mensagens, xeretar os outros, ou vos distrair com algum assunto da moda. Com isso, as mentes ficam rasas, as conversas, superficiais, e a humanidade, pobre.

 

E não sou só eu quem observa isso. A psicóloga da PUC-SP Luciana Ruffo endossa que a ideia de que é essencial buscar o autoconhecimento – isso se a pessoa quiser interagir de uma forma mais plena com o mundo. Talvez o ideal metafísico não tenha mais tanto apelo, mas os benefícios da prática se estendem à vida prática. Isso porque geram uma frente de batalha mais eficaz contra os problemas físicos e emocionais, tal qual a organizada pelos meus conterrâneos em Maratona em 490 a. C., quando barraram a invasão dos persas.

 

Contudo, nem sempre a culpa é só do indivíduo. Para o professor de filosofia da UniRio Nilton Anjos, se ele convive com um círculo social que não estimula reflexões, provavelmente não irá fazê-las, pelo menos não com uma frequência que eu considere aceitável (tudo, bem, talvez eu seja exigente demais). Passatempos populares, como vídeos de gatos, sites de fofocas e piadas do WhatsApp, não incitam a autoexploração, pois servem justamente para distrair a mente. O problema é que eles foram alçados a uma posição de protagonistas na vida cotidiana. E pensar que na minhá época nos “distraíamos” com as peças de Sófocles e Ésquilo…

 

Com isso, as mentes estão mudando – e para pior. Em um dos livros recentes que mais me intrigou, “A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”, do escritor norte-americano Nicholas Carr, descobri que as facilidades da internet e seus diversos estímulos estão acabando com a capacidade de concentração.

 

E sem concentração, o conhecimento não avança. Como bem lembra a professora de filosofia da ECA-USP Marilia Fiorillo, o pensamento tem dois momentos: o ímpeto e o recolhimento. No primeiro, as pessoas buscam a informação; no segundo a metabolizam. Com a drástica redução do exercício dessa segunda fase, o saber não é devidamente apreendido.

 

Sem essa absorção, as pessoas deixam de questionar suas ideias, gerando extremismos e impedindo discussões honestas. Se fosse tentar aplicar o meu famoso método atualmente, seria xingado e ameaçado – ou bloqueado no Facebook. Em meu julgamento, poderia ter pedido uma pena alternativa: prisão, multa ou exílio de Atenas. Recusei todas essas opções, pois avaliei que caso aceitasse uma delas, estaria assumindo a minha culpa em “corromper” os jovens. Em suma, morri pelas ideias, pelo incitamento à autoexploração. Mas será que a cicuta foi em vão?

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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