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DOS CÍRCULOS VICIOSOS NA VIDA COMUM

 

Por Marcela Campos

 

corpos

 

No primeiro domingo do mês, dia 2 de agosto, acordamos um pouco mais tarde. De domingo dá pra tomar um café preguiçoso que a mãe prepara. Ela acorda meia hora mais cedo pra passar a água pelo filtro que segura aquele pó quase preto, quase sangue envelhecido.

 

Pode ser que a Gisele também estivesse fazendo isso lá pros cantos de São Leopoldo, RS, quando decidiu que não ia dar mais, não: o que o Élton estava fazendo, ah, não, aí já era demais. Depois de sete anos, ó, não vai dar, ela vai ter que pedir o divórcio. Ela foi decidida, viu? Falou pra ele que não queria mais, que nem a gente caga de medo de fazer toda vez que precisa comunicar uma decisão.

 

Se ela ficou com medo? Acho que não deu tempo. O primeiro golpe foi na cabeça. A Gisele até se fingiu de morta, veja só você, na esperança que ele parasse. Foi por pouco que ela não morreu mesmo. Levantar e pedir ajuda não dava, teve seus pés e mãos decepados.

 

A gente já viu outras mulheres terem seus pés e mãos decepados, assim, de pertinho, olho no olho, não viu? Porque não precisa ser com facão e o sangue não precisa manchar o carpete. Palavra também corta, às vezes. O volume delas corta a voz de quem escuta, essa outra mulher, e é por isso que ela não responde. Batedor de bife quando é muito usado fica cheio de verme e serve também pra bater por cima da voz de quem bate o bife todo dia, assim, diariamente. Batedor de bife pode ser marido. Batem nela todo dia e ela fica carente.

 

Tem um sobrinho que mora lá. O moleque tem uns quinze anos. Ela diz que ele tem um pau rosa na ponta, sabe? Ele não liga muito – quer dizer, ele acha um pouco estranho. Ela é tia dele, não é tia de sangue, tipo da mesma linhagem, mas é tia dele, e ele acha um pouco estranho, sim. É que ela tem um rabo bonito e fica insistindo muito pra ele quando ele volta da escola, mas é só de vez em quando. Aí ele manda ver, né. Custa nada, não, e ele mora lá de favor, quer ajudar no que pode.

 

Já falou pro tio. O cara tem tanta coisa pra resolver que tá desgraçado da cabeça. Nem ouviu, parece. Levantou, passou a mão pela barba, ligou a TV. Sempre que ele passa a mão pela barba é porque tá pensando que não consegue descobrir porque faz da mulher um bicho. Tem remorso do pensamento, mas sabe que é porque foi ela quem criou esse babaca que é o filho. Da última vez que o chamou pra sair, ele passou até no mercado pra comprar uns donuts daqueles ruins do Walmart, mas é porque eles gostavam de comer juntos. Chegou em casa pra pegar o menino e ele tinha sumido com os cem reais da carteira dele e não voltou pra casa até quinta-feira. Não sei porque suscitava toda essa esperança no pai toda vez que sorria pra ele. Era sadismo. Era sempre pra fazer o velho de idiota.

 

Esse aí, até quinta-feira, só deus sabe o que ficou fazendo. Tá com 26 agora. Mamãe deu tudo. Paga a conta do celular até hoje – é baratinha – só pra dizer que lhe paga as contas e quer satisfações. Aos 23, se não fosse dormir em casa, mamãe ainda queria dossiê. Perdi as contas de quantas vezes chorou no telefone – como podia um filho abandonar a própria mãe? As namoradas… Essas ela pagou pra dar no cano. Ele nem sabe que tem um filho por aí, no mundão. Mamãe pagou pra resolver isso também.

 

Agora ele só some. Ele some até quinta-feira e bem pode sumir até sexta-feira se lhe der no cano. E ninguém sabe se morreu. Pode ser que morra ou pode ser que se mate. Pode ser que não se mate porque como poderia abandonar a própria mãe?

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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