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Agirofobia

 

Por Marcela Campos

 

 
ilustração rua com olhos
 
Por que tão escorregadia, droga? Que tipo de gente comprava maçaneta redonda, dessas que se aperta pra abrir, machucando as articulações?
 
As palmas eram já líquidas do suor e sal e a boca era já seca porque vinha da porta aberta um vento infernal de rua. Os pés eram dois que quase se trançavam em queda. O tênis era branco leite e a sola lambia o concreto ainda com todas as ranhuras de confecção.
 
O que sujava seu corpo era o barulho constante de gente. Era gente preta, gente branca, gente de pele descascada do sol que fazia ferver o asfalto. E as gentes gritavam ao telefone que chegariam em cinco minutos e engoliam a pipoca doce que deixava os dedos tingidos de vermelho-sangue, como se pulsassem vida.
 
Olhos na trilha dos pés. E o ruído das vozes era tão horrível que chegava a parecer a sua própria voz multiplicada por mil, como reflexo no espelho.
 
É um burburinho que não existe dentro da lata, no banco de couro, dezoito graus celsius a soprar na cara, o pé viciado no pedal e nova brasil éfe eme às oito da manhã. Às dez, à uma, às quatro e às sete.
 
Mas naquele dia era pé no tênis branco que pisa o concreto e o asfalto e até o buraco e também a raiz das copas que sombreiam as calçadas.
 
“Dá um trocado?”, “Você sabe onde fica a Brigadeiro? Poxa, eu não sou daqui e não consigo achar a rua. Tô procurando emprego. Me indica a direção?”, “Não quer ver nosso cardápio? Fazemos grelhados e”, “E aí! Quanto tempo? Opa, te confundi… Desculpa”, “Chip da TIM, só dez reais, olha o chip da TIM!”.
 
Transpirava uma coisa grudenta. Sentia que suava o suficiente pra pele umedecer doce, e a primeira marcha das latas do engarrafamento salgavam o ar com a fumaça preta.
 
Olhos na trilha dos pés. E porque é que alguém haveria de gostar disso não sabia. Se expor assim ao incerto sem paredes.
 
O asco vinha pelas narinas. Como é que pode o azedo invadir assim? Como é que pode essa gente cheirar assim? Essa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente, nos olhos dos outros e ousa gastar muitas horas da vinte e quatro sob o sol, cheirando azedo.
 
E os disfarces? Cada baunilha que entope narizes nos pescoços azedos. O óleo de gergelim na panela quente cheira a graxa e envolve o fio e o brócoli e a cenoura praquela gente cortar entre os dentes. E depois cospem borrachento no chão ou nos buracos que exalam merda.
 
Olhos na trilha dos pés. A nuca doía, o abdômen tensionado sob a camiseta e os ombros presos às orelhas. Só que os braços são sempre livres.
 
O corpo exige essa relação estranha com os objetos do mundo. É lei da física que dois corpos não ocupam o mesmo espaço, mas os braços são pueris e, por muitas vezes, insistem em desafiar a lei. Batem forte e dolorido no que cerca o mundo.
 
Olha pra frente, imbecil! E mirou.
 
Olhos nos olhos de Alex. E Mariana, e Otávio, Marcos, Raquel, Clara, Roberto, Ana e dessa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente e ousa gastar muitas horas das vinte e quatro sob o sol.
 
Mirou o concreto derretendo, mirou a gente caminhando, mirou a chuva condensada, a barriga grande do homem, o prédio onde morava, a boca ao celular, a gente matando tempo. E se viu.
 
E ali todos os objetos ocuparam o mesmo espaço, que era o espaço de si, que era o espaço de tudo.
 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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