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Memórias Compartilhadas

 

Por Beatriz Quesada

 

Hora de passar adianta a herança da família

coisas antigas

Sua parte favorita da herança são as seis xícaras listradas de amarelo e acompanhadas dos pires, o único conjunto completo de sua coleção. Ficavam na prateleira à altura dos olhos, quando ainda era uma criança admirando a cristaleira que a avó ganhou de presente de casamento, na década de 30.

 

Minha mãe arruma cuidadosamente as xícaras antigas, primeiro envolvendo em jornais e depois colocando numa caixa de papelão. Tudo bem conservado até que a restauração do móvel da família fique pronta para receber as peças que acompanham a cristaleira há três gerações familiares. É bom estar cuidando do que sua avó e sua bisa cuidaram.

 

Olhei aquela pilha de louças amontoadas e perguntei se ela já havia pensado em se desfazer de alguma coisa. Claro que não. Preferia que se mantivesse na família, que eu e a minha irmã tomássemos gosto pela coisa e herdássemos o sentimento junto com as louças. Eu, que nunca tinha pensado em cuidar da cristaleira, propus que procurássemos outro destino para os objetos, só para ver a reação. Primeiro um não, depois um riso desconfiado. Cê tá louca, filha? Disse que ia dar só uma olhada, como quem não quer nada.

 

O primeiro passo foram os antiquários e afins. Na feira de antiguidades do MASP, que acontece todo domingo, encontrou uma xícara rosa igual a da bisa. Quanto custa? Ela não queria saber de vender, mas perguntava o preço. Depois percebi que só por curiosidade, já que também não queria comprar. Nada daquilo tinha o mesmo valor para ela, eram coisas estranhas à sua memória.

 

Quem sabe um museu? Uma instituição que se dedica à preservação e apresentação de objetos antigos parece um bom local para que as relíquias passem a eternidade. Minha mãe aprovaria. Sempre gostou de observar essas peças, pensar nas pessoas que as teriam usado.

 

Claro, nem todas as peças são aceitas pelas instituições. Se passar pelas etapas de seleção, a relíquia da minha mãe deve ficar na reserva do museu, entre suas iguais, sendo zelada por funcionários e exposta de quando em quando.

 

Mesmo se os museu e lojas estiverem prontos para receber a cristaleira, minha mãe não está pronta. Filha, não sei se estarei um dia. E eu nunca havia percebido o quanto aquele objeto significava até pedir que ela fizesse isso.

 

Cada um tem um tempo próprio para decidir que está na hora de se deixar aquele objeto – que tanto significa para sua vida e para sua família – ser conhecido e até usado por outras pessoas. Às vezes esse tempo nunca chega.

 

Perguntei se não queria contar a história da família em um projeto de registro, compartilhar o valor afetivo, como havia acabado de fazer comigo. Pra quê, filha? Ninguém vai querer escutar isso.

 

Encontrei uma iniciativa que ela achou interessante. Não por poder contar a sua história, mas por ouvir a dos outros. O projeto de voluntários do Museu da Pessoa funciona à distância, e conta com transcrição de relatos de vidas comuns. Para minha mãe, seguem juntos o medo e o entusiasmo de tentar algo novo, ou nem tão novo assim. Afinal, cuidar da cristaleira durante anos já não é manter viva a história de alguém?

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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