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Ainda bem que peixes Betta têm memória curta

 

Por Alexandre Amaral

 

Ah, merda. Borges já estava atrasado pro aniversário da filha quando se deu conta. Salvou metade do relatório, espiou por cima das divisórias de sua sala e percorreu o corredor de escritórios até a sala do chefe. Direita, esquerda e esquerda. Tomou sermão, mas conseguiu a tarde de folga. Pegou a filha na escola e foi para o zoológico.

 

Logo que chegou, viu que o lugar estava falido, tinha poucas pessoas. Por isso enfiam a faca nos ingressos. Mas a filha, que sonhava em ser uma bióloga quando crescesse, estava maravilhada. Assim que pôde, saiu correndo para a monitoria especial. Borges seguiu para a loja do zoológico. Comprou uns peixes Betta, achou que  seriam uma boa ideia de presente. Pouco espaço e pouco trabalho, só comida.

 

Um dos tratadores viu a cena e o alertou. “Muita gente acredita no mito de que eles têm memória fraca e por isso acham que não precisam comprar aquários grandes. Mas eles lembram muito bem onde estão as paredes.”

 

Borges disse que compraria o aquário na saída, só iria dar uma volta antes. Mas durante o percurso, algo o incomodou. Via poucos animais e muitas grades. Para Borges, tanto os jalecos brancos calculando o ph da água dos jacarés, quanto os suplementos alimentares lançados às aves pareciam parte de um enclausuramento forçado. Afinal, se a ideia era mantê-los em um habitat parecido ao original, por que diabos havia rinocerontes na Zona Sul de São Paulo??  

 

Pouco adiantaria que o biólogo explicasse que as medições e os suplementos eram para garantir o bem-estar e para prevenir doenças. Muito menos que havia um rodízio de animais para exposição, e que parte do valor do ingresso era aplicada em conscientizar a população sobre espécies em extinção. Borges prestava pouca atenção. Tinha que terminar o relatório.

 

Quando a filha saiu do passeio, ele nem notou o sorriso em seu rosto. Ligou o carro e acelerou. Quem sabe não tivesse corrido tanto conseguisse ler a frase de Jan Gehl, um famoso urbanista dinamarquês, gravada no portão: “Primeiro a vida, depois os espaços, e por fim os edifícios — o inverso nunca funciona.”

 

Em casa, percebeu que se esquecera de comprar o aquário. Decidiu deixar os peixes em uma bacia pela noite. Não faria mal… Amanhã compraria o aquário, assim que terminasse a outra metade do relatório. Amanhã, após virar à direita pelos currais, à esquerda pela área de alimentação e finalmente à esquerda, rumo às celas… digo, escritórios.

 

Ainda bem que peixes Betta têm memória curta.

 

 

Fontes: Vinícius Silva de Oliveira (Tratador de água e animais aquáticos), Niedja Maria (Tratadora de aves), Bruno Padovano (Coordenador Científico do NUTAU/USP – Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo).

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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