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A minha pena foi o tempo

 

Por Carolina Monteiro

 

Está escuro. Ouço vozes e ruídos das dezenas de pessoas com quem divido minha cela. Não consigo dormir. O tempo não passa. Tudo isso por um momento tantos anos atrás.

 

Era um dia como qualquer. Fui ao bar com amigos e, em um dado momento, me vi envolvido em uma briga. Uma briga que acabou mal. Muito mal. Logo depois decidi arcar com as consequências do que ocorreu e me entreguei.

 

Isso foi em 2002. Ainda era menor de 21 e isso foi levado em consideração, junto à minha falta de intenção, em todas as etapas do processo judicial pelo qual passei. Foi só em 2009 quando recebi minha condenação inicial. Depois disso, ainda respondi o processo em liberdade por mais seis anos, quando foi expedido meu mandado de prisão, em 2014. Só que os oficiais de justiça nunca vieram.

 

O que me restava fazer enquanto esperava? Vivi a vida. Passei 14 anos com medo. Mas aproveitei o máximo meu tempo livre. Me formei em direito, abri meu escritório… Atuei como advogado. Encontrei alguém e tive uma filha.

 

Não sei o que teria acontecido se não tivesse sido parado no trânsito um dia por um motivo qualquer. Acho que foi uma luz de freio queimada, uma bobagem. Se eu tivesse passado por lá cinco minutos depois… Só estava com meu RG em mãos e por isso o policial puxou minha ficha no local para verificar se eu tinha CNH e se estava em dia. Foi aí que tudo mudou. Ele me levou à delegacia, onde fiquei detido em uma cela na qual eu não queria nem encostar na parede. Limpeza? Vaso sanitário? Colchão? A cela não tinha nem tranca.

 

Primeiro, fui levado para o Centro de Detenção Provisória e só então para a penitenciária. Lá eu entendi o porquê de não existir penitenciária dentro das grandes cidades. Ninguém quer ver o que acontece lá. A distância dificulta até o momento de visitação. O tempo que as famílias precisam reservar para viajar a outra cidade para ver quem está lá dentro é enorme. Além do gasto que vem com isso. Passagem, gasolina, hospedagem…

 

Levei algumas coisas para sobreviver ao tempo que passaria lá dentro. Coisas básicas, como cobertor, um colchão simples. Sabe aquela cena de filme que mostra seus pertences pessoais sendo guardados e listados para serem coletados após a pena ser cumprida? Isso não acontece. Assim que tirei meu tênis ele já foi levado por um agente penitenciário que levou pra casa dele. Na minha frente mesmo.

 

Minha salvação foi o controle exercido pelo crime organizado dentro da cadeia. Assim que eu cheguei, eles falaram para eu ficar com eles. Me deram um colchão e me deixaram dormir perto da grade. Existe isso dentro das celas: as pessoas que dormem mais perto ou mais longe do vaso sanitário. Mesmo assim a gente dorme “de valete”, dividindo com outra pessoa. Por quanto tempo terei que dormir assim?

 

O pessoal do crime organizado me passou trabalho. Lá dentro, é tudo coordenado por eles. Trabalhei na cozinha, na biblioteca, na escola… Enquanto estava trabalhando, o tempo até passa de maneira normal. Mas quando o trabalho está nas mãos de outros detentos é impossível ver o tempo passar. Os dias se arrastam e uma semana parece passar em um mês. Porque não tem nada para fazer. Já me peguei pensando na minha família por um período de duas horas, mas quando fui olhar passaram 5 minutos. 5 minutos foi o tempo que durou a briga que me levou até lá.

 

Agora, faz um ano que estou vivendo no sistema. E eu ainda não entendi o objetivo de prender alguém tanto tempo depois do que ocorreu. Lá dentro, conheci várias pessoas que também tiveram que esperar muitos anos para serem punidas, mas o que se sente é uma punição que não faz mais sentido. Quando você entra no sistema, sente toda sua humanidade indo pelo ralo. Lá dentro não temos água, é completamente normal a presença de ratos, baratas e pombos, e minha pele está recheada de picadas dos percevejos que vivem no meu colchão. Não consigo imaginar que alguém saia de lá uma pessoa melhor.

 

Minha pena foi de um ano em reclusão e mais cinco que vou responder em casa, trabalhando. Depois desse ano passar, tem ainda outro processo: o exame prisional. Uma conversa com um psicólogo que nunca me viu e vai definir, em apenas alguns minutos, se eu estou apto a retornar à sociedade. Só o que consigo pensar é na minha apreensão de falar algo errado e não ser liberado, como aconteceu com muitos conhecidos lá dentro. Só posso imaginar agora quanto tempo vai demorar para que eu passe nessa consulta e, ainda depois disso, quanto tempo eu precisarei esperar para voltar à minha vida.

 

 

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De acordo com o advogado criminalista Juventino Francisco Alvares Borges, é muito comum processos criminais por homicídio durarem longos anos para serem finalizados. Isso porque a lei brasileira permite aproximadamente 40 recursos para a defesa do acusado, que têm um tempo específico de processamento diante da complexidade de cada caso. Além disso, os prazos estipulados para resposta durante o andamento do processo só valem para os advogados, não para os juízes, ou seja, um recurso pode demorar quanto tempo o juiz precisar para receber uma posição. Atualmente existem mais de 600 mil mandados de prisão abertos no Brasil, segundo dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

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