Desde a primeira memória que tenho, Dona Nisa já não conseguia guardar suas lembranças muito bem. Ao conversar, ela logo esquece o que falamos. Seus chocolates – doces são uma de suas grandes paixões – estragam nos armários porque ela não lembra que escondeu. E, para fazer as atividades mais básicas do dia a dia, ela precisa do apoio da sua ajudante, a Vera.
A mais velha dos três filhos de Luís e Ondina, Nisa Navarro nasceu em 1920, em Mococa, no interior de São Paulo. Diretora pedagógica, sempre teve uma pose autoritária. A braveza, porém, se esvai após as primeiras palavras trocadas. Perdeu seu companheiro de vida aos 69 anos – hoje tem 97. Mas nem isso abalou sua postura firme.
Vera ainda se lembra da época em que ela era totalmente lúcida. E se lembra do dia que isso começou a mudar: Dona Nisa, um senhora sempre tão confiante e cheia de si, quase caiu em um desses golpes baratos de banco. Esbaforida – não sei se pelo episódio ou pelo calor intenso típico de cidade interiorana –, chegou em casa gritando pela ajudante: “Vera! Preciso da senha da minha conta. Qual é mesmo?”. Vera estranhou, afinal, minha vó nunca tinha tocado nesse assunto com ela. Perguntou o motivo. “Uma amiga que encontrei na rua disse que precisa ir comigo ao banco. Ela está me esperando na porta”. Ao ir até lá, a estranha saiu correndo. Minha vó teve algum tipo de apagão enquanto andava sozinha e a fulana tentou se aproveitar dela.
Isso faz uns 20 anos. Desde então, ela passou a sempre ter companhia – o que não virou um problema. Não perdeu a personalidade marcante e o bom humor. Não deixou de dizer que a vida seria mais interessante se o feijão tivesse gosto de sorvete. E não deixou de brincar com as pequenas coisas. Mesmo ao esquecer de tirar os óculos na hora de se deitar, ela não perde a pose. “Eu preciso enxergar no sonho, oras”, diz, ao colocá-lo no criado mudo. De alguma maneira, consegue manter a postura inabalável.
Mas há momentos difíceis. Os que ela não me reconhece, por exemplo. Não chega a dizer, mas o olhar é revelador. Num primeiro momento, a tristeza é implacável. Tento, então, pensar que sou só mais um entre os quinze netos. E ainda tem os seis bisnetos. Talvez seja exigir demais dela. Olho a situação com a experiência de 23 anos de vida. Enxergo cada dia como uma experiência única.
Por outro lado, esse curto período de tempo mal cabe na memória de Dona Nisa. O que são 23 anos quando se tem quase um século de vida? Pior ainda quando não se pode distinguir com clareza o ontem do hoje. Os dias, para ela, são pássaros que pousam rapidamente no parapeito da janela e logo alçam voo para longe. Ao menos, eles levam consigo os problemas e angústias que costumam nos afligir.