Das igrejas aos terreiros, das mesquitas às sinagogas, dos centros aos cultos. Antes mesmo do sincretismo assim se chamar, o incenso já pairava entre uns e outros universos. O nome muda, junto com a forma, a cor, o aroma, o ritual… mas na relutância em olhar pro lado, poucos percebem o quão maiores e mais expressivas são as semelhanças.
Em cada templo, o incenso segue queimando, expandindo e saindo para a eternidade.
No imenso salão, todos organizadamente se colocam de pé, voltados para o altar, onde um Buda esculpido em madeira ocupa o centro, entre outras divindades e representações dele próprio. O Shifu, mestre Kung Fu do templo, usa a chama das velas para acender o primeiro montante de incenso, que queima por alguns segundos em um intenso fogo avermelhado antes das pontas transformarem-se em brasas e depois em cinzas, que agora propagam uma delicada fumaça acinzentada. Ainda com os incensos na mão, o mestre se curva algumas vezes, em reverência. Com as mãos unidas, todos acompanham. Deposita os incensos no altar, em frente à imagem.
Para acender o montante seguinte, maior, ele usa a chama de uma pira. Fogo, brasa, cinza. Passa por entre os aprendizes, agora já sentados e em meditação e se dirige ao pátio, do lado de fora do templo. Repete as reverências agora em frente a uma imensa representação de Kwan Yin, deusa da misericórdia, cercada de dois bodisatvas (seres iluminados). Deposita o incenso e volta para o salão.
A fumaça se propaga tão rápido que, da porta, os olhos sequer alcançam o altar e o olfato já foi tomado pelo aroma adocicado do sândalo. Bom, isso para um visitante. Para quem vive o Kung Fu e o Budismo, de tão familiar ele se torna imperceptível. Assim como, metaforicamente na religião, as boas ações devem se tornar. Entre transcender o material, mentalizando desejos, preces ou simplesmente mensagens que vão para um outro mundo, e materializar o que habita em outro plano — resgatando a Terra Pura que cheira a sândalo —, no budismo, o incenso se faz ponte.
“Que minha oração suba até Vós como a fumaça do incenso” (Salmo: 140, 2). Como em outras celebrações solenes, nesta missa de Pentecostes o padre desce os degraus do altar e caminha pelos corredores abarrotados da Igreja iluminada, agitando com a mão direita o turíbulo, recipiente suspenso por correntes onde as ervas são queimadas, em um gesto que lembra uma cruz. O rito inunda os sentidos: a fumaça espessa (geralmente resultado do incenso misturado ao carvão) logo turva a visão, impedindo que se enxergue completamente o altar. Há quem diga que é a materialização do mistério da fé — crer mesmo sem ver. O aroma pouco sutil toma de assalto as vias respiratórias e o som da sineta que acompanha a andança ressoa estridente e um tanto atordoante. A atmosfera, no entanto, é de devoção: se reflete nas expressões de prece e nas tentativas desajeitadas de se colocar perto do cortejo e ser imerso na fumaça, tal qual acontece quando o padre sai a aspergir água benta. Ao final da incensação, a cerimônia segue, mas já não mais como qualquer outra.
Do Gênesis, quando a fumaça chegava como um “aroma agradável da adoração” à Deus, ao Apocalipse, em que anjos colocam-se no altar com um turíbulo de ouro nas mãos e oferecem orações aos santos, no catolicismo, o incenso também se faz ponte.
Na entrada, o incenso da casa queima em frente à imagem de Ogum, sincretizado na figura de São Jorge. Enquanto algumas pessoas aguardam atendimento, sentadas em cadeiras de plástico, do outro lado da cortina que divide a sala em duas, os tambores e cantigas começam a ressoar e vão, pouco a pouco, aumentando. “Vem vem vem, aos pés do nosso senhor, vem bater cabeça, meu pai Oxalá mandou”.
Abrem-se as cortinas: a cerimônia de início da gira vai começar. No primeiro momento da defumação, a erva é colocada aos poucos no turíbulo, já aceso com carvão, e percorre, dos pés às cabeças, um a um dos pais e mães que cantam em roda: “Meu pai Oxossi, peço licença para defumar”. Passa então entre as fileiras de cadeiras plásticas. A fumaça cinza rapidamente toma a sala, purificando o ambiente e os sacerdotes para receber as entidades.
Saravá defumação. Incorpora. O ar agora se enche da fumaça dos charutos. Quem defuma a partir de então são as entidades, baforando a fumaça enquanto dão o passe. A fumaça, embora matéria, é capaz de atingir o plano espiritual — atravessa os poros e chega na alma, abrindo espaço para que as entidades trabalhem alinhando os chakras. Na umbanda, o incenso igualmente se faz ponte.
Colaboraram: Shifu Luis Mello; Pai Fábio Bispo Antônio; Exu Rei.