logotipo do Claro!

 

Não é “só” sobre a dor

 

Por Iolanda Paz

 

enxaqueca-01

Gabriela não suporta mais: já são 4 dias corridos. No escritório, a luminosidade mais baixa de seu monitor difere dos outros ao redor. Quieta, ela tenta se concentrar no serviço, mas aquela dorzinha irritante de fundo – de uma crise que ainda está latente ali – insiste em permanecer.

“Hoje, não!”, soca a mesa. Pontos pretos invadem sua visão, fechando-a. Pisca os olhos não querendo acreditar no que começa a acontecer. Ela sabe bem o que significa, e também sabe que hoje era o prazo final para entregar o relatório ao chefe. Gostaria de conseguir manter a calma, mas esse presságio da dor e o peso das responsabilidades fazem sua respiração ficar ofegante. Puxa a bolsa e a bolsinha de remédios: prepara um coquetel de sumax com naproxeno e joga para dentro. Desliga o computador porque já não consegue mais olhá-lo. O estômago começa a ficar embrulhado. Respira quase sem ar.

Antes que a dor venha de vez, e sem conseguir se equilibrar direito, procura o chefe para avisá-lo que teria de ir embora. “Mas de novo! Olha, eu também tenho umas dores de cabeça fortes, viu? Toma uma neosaldina que passa. Espera um pouco e volta para o relatório, não quero saber de preguiça!”

Desacreditada pela milésima vez, vira-se na tentativa de voltar à mesa, mas para petrificada. Sente um soco no meio da cara: a enxaqueca pulsa – e pulsa insuportavelmente. Leva as mãos aos ouvidos com a sensação de que algo havia estourado em sua cabeça. Em seguida, uma ânsia, e corre para o banheiro. Ajoelhada, ela vomita com as luzes apagadas. A enxaqueca pulsa mais forte. Liga para o marido e suplica que a busque.

No carro, o cheiro de couro se intensifica absurdamente a ponto de provocar mais enjoos. Mesmo abafados, os sons de fora parecem muito maiores e irritam-na. No banco de trás, a sensação de estar à beira da perda de consciência lhe acompanha, mas ela sofre calada – já cansou das tentativas ingênuas de compartilhar a dor com o marido.

Print
A enxaqueca é considerada uma doença incapacitante pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A cefaleia em si dura de quatro a 72 horas, podendo reaparecer com intervalos e por dias seguidos.

A “garota enxaqueca” – apelido que ganhou aos 14 anos de idade –, tinha tomado o anticonvulsivante e o antidepressivo daquele dia. Não que estivesse muito contente com eles (ou com seus efeitos colaterais de sono e apatia), mas faziam parte do tratamento preventivo que agora tentava. Só que a enxaqueca ditava as regras de sua vida há exatos 17 anos. Com o peso deles sobre a cabeça, já tinha desistido de indagar quando (e se) aquela maldita a deixaria em paz.

O descobrir-se enxaquecosa não foi uma tarefa das mais simples. Gabriela teve de fazer tudo quanto era exame (de sangue, ressonância magnética, tomografia, etc) para o médico ter certeza que não era outra doença. Não aparecendo nada em nenhum deles, os sintomas bastaram para o diagnóstico clínico da enxaqueca. Mas, com ele em mãos, novas incertezas passaram a angustiá-la ainda mais – não havia uma receita de “cura”. Em troca, Gabriela recebeu uma lista de medidas possíveis para controlar as crises: remédios emprestados de outras doenças, restrições na alimentação, acupuntura e por aí ia.

Sem regras universais nem soluções simplistas, um esforço desestimulante de descoberta de seu próprio organismo começou: o que trazia crise para uma pessoa, não necessariamente traria para ela. Sua mãe, por exemplo, se contorcia de dor quando era exposta a barulhos altos ou a mudanças climáticas abruptas. Já suas próprias crises – por mais que Gabriela ainda não tivesse todas as respostas que queria – estavam mais relacionadas a estresse e falta de sono (como naquela semana fatídica). Em comunhão genética, mãe e filha tinham as emoções e frituras como gatilho da dor.

Naquele noite, Gabriela queria entregar o relatório e se sentia inútil. O caminho para o hospital era de impotência: lembrava das privações e de tudo que a enxaqueca já lhe fizera perder, enquanto tinha de estar deitada num quarto escuro desejando que ela fosse embora. Na época da faculdade, teve de fazer muitas provas com crise, sem nem conseguir olhar direito para o papel! Estudar na véspera, a máxima da vida estudantil, não foi exatamente uma opção para ela. Precisou se organizar muito bem e até antecipar tarefas, porque a dor podia surgir do nada – na hora em que bem entendesse.

A cabeça dela pulsava no corredor do hospital e ela se preocupava com o emprego: intuía que seria demitida de novo, ou que nunca teria uma boa oportunidade. Com raiva, inconscientemente se culpava, mas sabia que não tinha mais nada a fazer. Era deixar a injeção de tramal entrar pela veia e ir para casa descansar, torcendo para ao menos acordar melhor. Mas os planos de Gabriela, tão frágeis, ainda seriam atropelados pela enxaqueca mais algumas vezes. Só naquela semana.


* Gabriela é uma personagem criada com base nos relatos de: Sonia Perli Có, Karine Laís Oliveira, Ana Paula Garbeto, Adriana Ribi, Marina Ferreira, Renata Forti, Grasiele Mendes, Paolla Delgado, Flávia Grissi, Ione Rodrigues e Miúcha Mateussi. Sua história é uma dentre as várias narrativas particulares de cada pessoa com enxaqueca.

Colaboraram:
Mario Fernando Prieto Peres: neurologista, professor da pós-graduação do Instituto de Psiquiatria da FMUSP e criador do site www.cefaleias.com.br
Alexandre Feldman: médico clínico geral, autor de livros sobre enxaqueca e criador do site www.enxaqueca.com.br

Ilustrações: Aline Melo e Mariana Rudzinski

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

Expediente

Contato

Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, Bloco A.

Cidade Universitária, São Paulo - SP CEP: 05508-900

Telefone: (11) 3091-4211

clarousp@gmail.com