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Entre bailes, balas e blues

 

Por Amanda Pechy e Juliana Santos

 

vetorizada 2Os saxofones são instrumentos transpositores — ou seja, a nota escrita no papel é diferente da que ouvimos. Julio Theodoro de Souza, de certa forma, era como seu instrumento. Ao escutá-lo tocar, ninguém imaginaria o que estava por trás desse jazzman.

 

Nosso saxofonista nasceu órfão: a mãe morreu no parto e o pai desapareceu. Foi criado pelos avós, ex-escravos que moravam nas terras de seu antigo senhor. Quando faleceram, ficou só, e a solução para sobreviver foi a música. Hoje, quase um século mais tarde, Filiph Neo, neto de Julio, conta ser ele sua principal referência.

 

“É fundamental entender o sofrimento de meus ancestrais”, afirma Neo. O cantor de R&B (rhythm and blues, gênero desenvolvido a partir do blues e gospel) se construiu a partir de histórias do avô: para ele, música é legado, e a ascensão de artistas negros no Brasil desperta a identidade “para além do navio negreiro”. Como diz, “não tem como mudar o rumo de uma história sem conhecê-la”.

 

Também transpositora, a história escrita difere da real, principalmente no que diz respeito ao espólio afrodescendente. “É inferiorizado tudo aquilo que vem do negro”, declara Talíz de Oliveira, também artista de R&B.

 

Quando começou a cantar na igreja durante a infância, na periferia de Brasília, ela já sabia que não se encaixava no padrão aceito. Apesar de achar que o aumento da visibilidade de artistas negros abre portas para outros, afirma que a representatividade é muito pequena.

 

Quem nasceu nos anos 80, por exemplo, vivenciou o que Daniela Gomes, pesquisadora de black music da Universidade do Texas, chama de “geração Xuxa” – quando só havia corpos brancos na mídia, e alguém com sua melanina nunca seria paquita. “Ver negros em posição de destaque é novo”, conta.

 

Isto explica como pessoas negras, num país onde são mais de cem milhões, tiveram de buscar referências no estrangeiro. A maior inspiração de Talíz, por exemplo, é Lauryn Hill (célebre rapper estadunidense, dona de oito prêmios Grammy e 19 indicações).

 

Importada, a black music ajudou a moldar a música negra brasileira, que ganha traços próprios. Somada ao crescimento da cultura hip-hop, aumento do poder aquisitivo da população e evolução da internet, novas vozes ganharam espaço.

 

“Hoje temos uma geração de artistas que entende o papel da mídia como fundamental para propagar sua arte”, conta Daniela. Com maior exposição, as modalidades da black music vão além da população negra para ser consumida pelo restante do Brasil – incluindo brancos da elite.

 

Só que visibilidade não garante ascensão. “Nós produzimos, mas não somos donos do dinheiro”, lembra a pesquisadora. “O racismo é uma estrutura de poder, também presente na cultura.” Nessa estrutura, pessoas negras encontram na música uma forma de resistir. Para Daniela, arte é resistência, cultura é resistência, e ser negro é resistência.

 

83 tiros do Exército calam o samba de Evaldo Rosa

 

Em 7 de abril, militares cariocas alvejaram o carro do músico negro Evaldo Rosa dos Santos, tocador de cavaquinho no grupo Remelexo da Cor. Ele estava com o sogro, esposa e filho, e faleceu no local.

 

“Fui criado para entender que não deveria confiar na polícia”, Neo conta. Cada pessoa com quem falamos descreveu uma corrida diária, em que se alternam a luta pela visibilidade e o esforço para ser despercebido — por fardados nas ruas, racistas, o próprio sistema.

 

Ainda que vozes negras toquem cada vez mais nossos ouvidos, são seus corpos que lotam prisões e necrotérios. Enquanto o funk “Vamos Pra Gaiola” toca no Lollapalooza, o criador do famoso Baile carioca que inspirou a canção, Rennan da Penha, está preso por suposta associação com traficantes.

 

Pela realidade que vive em Brasília, Talíz confessa achar que o racismo ainda persistirá por muitos anos – frente a isso, ela não pretende desistir. “A verdade é que funcionamos quando está doendo. Quando machuca, a gente se mexe”.

 

“Temos que lutar em outras esferas para mudar esta estrutura”, alerta Daniela Gomes. “Se não, vamos continuar cantando, e um dia, saindo de um show, alguém como o Emicida poderá ser preso porque ‘Ah, não reconheci. Era só um preto’”.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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