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No seio familiar, a transição de um jovem trans

 

Por Camila Mazzotto

 

Richard Alcântara tirou a camiseta e pediu à namorada que o fotografasse perto da piscina. Num domingo de sol em Caçapava, interior paulista, comemorava o aniversário de Rosi, sua mãe. Depois do registro, vestiu-se rapidamente e correu para o banheiro. O escape tinha um porquê: era a primeira vez que a família o via com os pedaços de fita que cobrem seus seios, enquanto junta dinheiro para se submeter a uma mastectomia, cirurgia de remoção da mama.

Quando voltou, porém, sucedeu o que mais tarde descreveria como “um dos melhores momentos de sua vida”: havia fita cobrindo a região do peito de todos os tios e primos presentes, do mais velho ao mais novo — o último, um bebê de 2 anos. Em menos de 15 dias, a cena, registrada em vídeo pela namorada, foi compartilhada por mais de 12 mil pessoas no Facebook. “Você é homem igual a nós!”; “Queremos te ver feliz, não chorando!”, “Tem amor maior do que o de família?”, gritavam, enquanto aplaudiam o jovem de 22 anos.

Pensar em quais seriam as reações dos parentes não era o que assustava Richard. Ao falar da família, o jovem abre um sorriso e conta que, desde quando se assumiu transexual — há quase três anos —, eles têm sido o seu principal suporte. Em tom de orgulho, Osvaldo, um de seus tios, lembra do que disse ao sobrinho à época: “Temos o direito de viver a vida que faz a gente feliz, independente de sexo, de cor. No que precisar de mim, estarei aqui”.

Com o celular em mãos, Richard tenta driblar as repetidas notificações que sobem à tela — após a repercussão do vídeo, o grupo de família no Whatsapp bateu o recorde de mensagens — e indica onde se encontra na gravação o tio, morador de Caçapava – “é o que me abraçou”. E acrescenta: “Ele é feito um pai para mim”.

O desconforto no dia em que apareceu sem camisa em frente à família, confessa, era com a exposição do próprio corpo — faz só dois meses que, sob acompanhamento médico, iniciou o tratamento com hormônios masculinos. “Ainda me sinto dentro de um corpo que não me pertence, mas depois que me assumi e fui acolhido por minha família, me tornei uma pessoa mais feliz”, conta, um pouco antes de começar o expediente como auxiliar de cozinha em um restaurante em São Caetano do Sul (SP), município onde encontrou oferta de emprego e vive há pouco menos de um ano.

A relação entre a autoestima de pessoas trans e o apoio familiar foi um dos pontos discutidos por Bruno de Brito Silva em sua dissertação de mestrado, defendida em 2016. A partir de um estudo com cerca de 200 indivíduos trans, o pesquisador, atualmente doutorando do Núcleo de Pesquisa Dinâmica das Relações Familiares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), identificou que, quanto maior era o nível do suporte familiar, maiores eram também os níveis de autoestima e de aceitação da identidade de gênero entre esse grupo.

Em outro estudo do qual também fez parte, a presença do apoio familiar reduziu a probabilidade de que pessoas trans ficassem sem moradia — e, possivelmente, passassem a viver nas ruas. Em São Paulo, por exemplo, o censo da população de rua realizado pela Prefeitura em 2015 revelou que cerca de 10% dos entrevistados se identificaram como LGBT.

Entre os pacientes já atendidos pelo médico Rodrigo Itocazo, cirurgião de redesignação sexual no Hospital das Clínicas da FMUSP, também não foram poucos os que relacionaram a falta de suporte da família ao ingresso em atividades marginalizadas, como a prostituição. No decorrer de seus dez anos de atuação, o médico já escutou repetidos relatos de violência psicológica e sexual no meio familiar, como estupros que visavam “corrigir filhos trans”.

Ele percebeu que, na maioria dos casos, a intolerância surgia como fruto do desconhecimento das questões de gênero por parte das famílias, que, muitas vezes, enxergavam o quadro como um “erro”, “doença” ou “frescura”.

Rosi, a mãe de Richard, conta que, no início, teve dificuldades para entender a condição do filho. “Hoje, eu tenho orgulho de dizer que tenho dois filhos homens, mas, antes, não era fácil, porque era a minha primeira filha e eu queria colocar roupa rosa, vestidinho…”, confessa.

Projetar expectativas sobre a vida dos filhos é um comportamento natural por parte dos pais, mas, alerta Beatriz Bork, psicóloga do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) do HC, isso não pode levar à coibição da identidade de uma criança ou adolescente. “Uma proibição taxativa ou até velada pode causar problemas emocionais graves para essas pessoas no futuro, como quadros de depressão e tentativas de suicídio”, explica.

Foi só em meados de 2017 que Rosi e Richard escutaram a palavra “transexual” pela primeira vez, num episódio da novela Força do Querer, da emissora Globo. “O que a Ivana [personagem trans] sentia era exatamente o que eu estava sentindo e não conseguia entender do que se tratava”, lembra.

A partir daí, Richard buscou, então, informações na internet, foi atrás de psicólogos, médicos e, enfim, deu nome à falta de identificação com o seu sexo biológico que o incomodava desde criança. Enquanto desvendava sua identidade, compartilhava tudo o que sentia e aprendia com a mãe.

A transição da pessoa trans, como ressalta o pesquisador Bruno Silva, é um processo também compartilhado pela família e, por isso, acolhê-la é tão importante quanto o acolhimento do indivíduo. “O olhar de culpabilização sobre a família é um problema. Temos de olhar para o todo, então também é fundamental que a pessoa trans escute e ajude a família nos seus questionamentos, sofrimentos”, acrescenta.

Hoje, Rosi diz que, se pudesse dizer algo aos pais de filhos trans, não precisaria fazer uso de mais do que uma palavra: respeito. “Espero que outras famílias possam se inspirar e também respeitar quem são seus filhos, sobrinhos, primos…”, diz. Richard, ainda, questiona a falta de confiança em um dos lugares onde se espera que esse sentimento seja abundante — o ambiente doméstico. “A gente já encontra tanto preconceito na rua; será que também vamos ter que sentir medo dentro de casa?”.

Antes de guardar o celular e entrar para o restaurante, ele olha para o céu e lembra que, há poucos dias, encontrou no caminho para casa moradores de rua que lhe pediam comida. “Pensei comigo: se eu posso ajudar, por que não vou ajudar?”, conta, ressaltando que, à época, havia acabado de receber um de seus primeiros salários. E acrescenta: “Acho que é essa a pergunta que a família das pessoas trans têm de se fazer: por que não ajudar, acolher?”.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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