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Nunca é só um sonho

 

Por Gabriela Caputo e Pedro Lobo

 

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Arte por Renata Souza

 

Algumas horas depois de fechar os olhos, surge uma ameaça. “Foge!” é o instinto natural. Não tem como. Porta quebrada, janela fechada, a ponte desmoronou. Sonhos como esse, sem saída, têm surgido para alguns brasileiros.

 

Cyntia Pivato está entre eles. Aos 18 anos, ela nunca sonhou tanto quanto agora. Sonhos durante a noite toda, bem detalhados e com um tom de angústia. Dormir já não tem sido tão bom assim. É cansativo, ela confessa. O que a jovem tem vivido reflete uma antiga curiosidade: por que sonhamos?

 

Gilson Iannini, professor de teoria psicanalítica, diz que o sonho é o momento em que o cérebro processa as informações que não foram elaboradas ao longo do dia. Mais do que isso, é quando recuperamos desejos, traumas e medos que não são conscientes. 

 

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Sigmund Freud, pai da psicanálise, e Carl Jung, criador da Psicologia Analítica, acreditavam que os sonhos são a porta de entrada ao inconsciente. Com uma diferença: o segundo via no sonhar uma janela para as camadas da mente primitiva, que não são da personalidade de um ou de outro, mas da nossa espécie. Ou seja, que delimitam o que é ser humano.

 

Através da distorção, em que surgem os absurdos, as situações fora da lógica ou da realidade, os sonhos driblam nossa censura interna e mostram o que realmente somos e pensamos, conta Gilson. Os sonhos “aleatórios”, que Cyntia também relata, vêm daí.

 

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Sonhar pode ainda ser um treino da mente para cenários futuros, conta Natália Mota, neurocientista especializada no sono, criando respostas mais rápidas para um futuro ameaçador. E esses mecanismos, baseados no dia a dia, podem ainda ter um efeito coletivo em determinados momentos históricos.

 

Na Alemanha nazista, por exemplo, a jornalista Charlotte Beradt ouviu mais de 300 sonhos para responder: “Como o governo Hitler impactou o sonho dos alemães?”. O resultado, publicado no livro Sonhos no Terceiro Reich, mostrou que os impactos do totalitarismo, marcado pelo terror, foram sentidos até em sonhos. Mais de 80 anos depois, já na pandemia, grupos de pesquisa brasileiros decidiram fazer algo semelhante. 

 

Em estudos separados, que escutaram centenas de relatos, tanto Natália quanto Gilson chegaram à mesma conclusão: os primeiros meses de Covid-19 no país deixaram mais fortes os sentimentos de raiva e tristeza no sonho dos brasileiros.

 

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Durante eventos como esses, de ruptura na vida comum e uma onda de incertezas, o inconsciente coletivo é abalado. Começam a surgir padrões nos sonhos, explica Gilson. Além de maior intensidade, a angústia foi outro padrão, com cenários de perigo, sem escapatória. Cyntia faz parte dos 14,4 milhões de desempregados no Brasil, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE, e nesse período de crise também sonha, muitas vezes, com uma grande fuga. 

 

“Estava com algumas pessoas e comecei a falar muitas coisas e agredir, com crise de ansiedade e agressividade. Fugi de médicos, que foram atrás. Eu revidava, acabei agredindo um deles, que conseguiu me segurar”, diz sobre um dos sonhos recentes. A vivacidade citada por Gilson, sempre presente: “Senti cada suspiro e angústia que estava vivendo no sonho”, afirma Cyntia.

 

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Mas, apesar dos padrões em períodos de crise, numa escala mais individual esse nem sempre é o melhor caminho. Pensar o significado dos sonhos pode ser um bom exercício, opina o psicanalista, mas sem buscar símbolos universais. O mais interessante é compartilhar pensamentos, contar para as pessoas, abrir o sentido.

 

Colaboraram:

Gilson Iannini, professor de teoria psicanalítica do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em filosofia pela USP e um dos autores do livro Sonhos confinados: O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia

Marcio Luciano de Souza Bezerra, mestre em Neurologia pela UFF, doutorando de neurologia da Unirio, possui título de especialista na medicina do sono pela Associação Brasileira do Sono

Natalia Bezerra Mota, doutora em Neurociências pela UFRN e membro do laboratório Sono, Sonhos e Memória do Instituto do Cérebro da UFRN

Cyntia Pivato, 18 anos, vestibulanda

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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