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Procuram-se fadas

 

Por Ana Gabriela Zangari Dompieri

 

Eleita expressão do ano de 2019 pelo dicionário de inglês australiano Macquarie, a “cultura do cancelamento” é um fenômeno novo e antigo; segundo o psicólogo Yuri Busin, sempre convivemos com a exclusão em nossas vidas, excluindo ou sendo excluídos. Mas hoje ela atinge um patamar digno do nome “cultura” por si só, o que, segundo a doutora em comunicação Issaaf Karhawi, se deve às redes sociais, com seu alcance e rapidez.

Ela explica que ambientes digitais possuem uma lógica intrinsecamente binária (vide seguir ou não; curtir ou não), que acabamos carregando para a dinâmica social nas redes: fada sensata ou cancelado? Nesses ambientes, há algo inédito: autonomia e poder do público decidir sua rotina midiática e, com isso, quem ocupa e quem não ocupa espaços de visibilidade. 

“Nós elegemos pessoas para ocuparem esses cargos, e elas, por outro lado, se passam por nossas íntimas, acessíveis; diferentes das celebridades tradicionais”, diz Issaaf. “Assim, junto com a identificação que temos com esse líder de opinião, imaginamos que ele nos agradará em tudo; sempre”. Se isso não acontece, somos os primeiros a destituir essa pessoa desse cargo, “como se tivéssemos sido traídos”, promovendo o seu linchamento virtual. Algo que demonstra essa dinâmica é cancelamento se aplicar normalmente a pessoas que já foram endeusadas para o público que agora o rechaça. 

Daniele Rodrigues, que é gerente de conteúdo da agência de comunicação F.Biz, defende que, apesar de estarmos muito conectados, nos falta um letramento digital. É possível que, com ele, o público compreendesse melhor a sua relação com os influenciadores nas redes: por mais espontânea que pareça, uma relação com uma marca. Segundo Daniele, esta “marca” pode e deve ser cobrada por errar nas pautas que utiliza como elementos de marketing: Anitta com favela e LGBTQIA+; Pugliesi com saúde. 

O cancelamento toma corpo com o movimento #MeToo, em 2017, propondo boicote a produções de homens assediadores. E esse poder do consumidor faz todo o sentido. “Mas, hoje, o cancelamento passa a desejar que o cancelado suma do mundo e nisso entra o discurso de ódio: pessoal e gratuito”, diz Daniele. Ela abstrai um punhado de razões que levam ao cancelamento – como desejar fazer parte de um coletivo ou desconhecer o contexto de algo –; dentre elas, apenas uma advém de causas legítimas, que envolvem princípios, segundo ela. Mas, mesmo na categoria das preocupações legítimas, com essa prática no campo binário citado por Issaaf, todos os erros, dos mais pontuais aos mais teimosos, “se igualam nas redes e se punem da mesma forma”, o que, para a doutora, banaliza o próprio cancelamento.

Mesmo quando o punido se desculpa e abraça seu erro, não nos parece suficiente. No caso dos que não ficam com raiva e assumem uma nova base de fãs “anti-mimimi”, apenas o tempo os poderá recolocar em posição de “descancelamento”. Aí está muito da controvérsia do punitivismo colocado por Yuri: “achamos que punir é a melhor forma de proporcionar mudanças reais, quando, na verdade, não acreditamos que o indivíduo punido seja passível de mudança”. Isso resulta num ciclo de violência improdutivo. O máximo que podemos esperar das pessoas é a abertura e o esforço para melhorar, inclusive, segundo o psicólogo, atentando-nos sempre a nós mesmos antes dos outros. Por isso não é justo igualar os influenciadores mais reincidentes e ingratos aos mais arrependidos e solícitos. Na busca por algo ou alguém que seja perfeito, uma fada, é provável que estejamos deixando cair muitas pessoas que estão tentando e seriam aliadas valiosas para aumentar a visibilidade de certas pautas.

 

Colaboraram: Daniele Cristine Rodrigues, Gerente de Conteúdo da agência de comunicação F.Biz, participante do grupo de pesquisa COM+/USP e professora de pós-graduação em entidades como ESPM e FAAP; Issaaf Karhawi, Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (linha de pesquisa: Comunicação e Ambiências em Redes Digitais), pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Mídias Digitais, o COM+, da ECA-USP e docente na pós-graduação lato sensu “Mídia, Informação e Cultura” do CELACC (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP; Yuri Busin, psicólogo, doutor em neurociência do comportamento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e diretor do CASME (Centro de Atenção à Saúde Mental – Equilíbrio)

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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