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à procura de mim

 

Por Adrielly Kilryann e Rian Damasceno

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Em um quarto escuro, uma pergunta atormenta: “Quem sou eu?”. O questionamento é inevitável e agoniante. A frustração e a tristeza de não encontrar uma resposta se tornam companhias no dia a dia, e a solução parece ser invisível.

Quando hormônios do crescimento afloram, a situação pode ficar ainda mais confusa. Daniel, Cami, Eduarda e Emanuel, por exemplo, tiveram suas puberdades repletas de dúvidas. Perguntas paralisantes eram constantes na rotina mental: “Esta pessoa é realmente eu?”, “por que devo ser desse jeito?” e “o que quero me tornar?”. Todas eram respondidas com silêncio.

Essas indagações, nas palavras de Daniel, eram como um míssil de confusão. No impacto, tudo passou a ser questionado. Restaram, nos destroços, os sentimentos de não pertencimento e dissociação, já que é difícil se sentir parte de algo quando não se sente parte nem de si. O que sobrou foi um ser desconhecido, com roupas que não pareciam ser suas e que não se reconhecia no espelho. O desconforto era grande, mas para não enfrentar julgamentos, esse sentimento angustiante foi reprimido.

Esse pesadelo interno se tornou mais assustador com as redes sociais. Além de ter que lidar consigo mesmo, as outras pessoas podiam ser um gatilho. Bastava ver uma imagem publicada por alguém que a comparação começava: “Por que não posso ser assim?” ou “por que o meu corpo está contra mim?”.

Os anseios por um “eu” que parecesse confortável abriram espaço para medos. O medo de não ser compreendido, de ser rejeitado por aqueles que ama, do futuro incerto e da crueldade mundo afora. Eduarda, em especial, temia tanto que negava sua própria identidade.

Viver todos esses sentimentos constantemente ficava pior quando ninguém ao redor parecia entender. Emanuel conta que a solidão prevalecia antes de qualquer coisa: era como se só ele se sentisse assim. Mas não era só Emanuel. Cami também sentia essa dificuldade de ser compreendida.

Ignorar a avalanche de questionamentos parece ser a solução, mas chega o momento em que a escuridão fica insuportável. É ao olhar para dentro de si mesmo que o encontro acontece. No Brasil, ele ocorre para ao menos três milhões de pessoas. Mas esse encontro não leva o mesmo tempo para todos. Para Daniel, foi quando tinha 15 anos e se descobriu como um homem trans. Para Cami, que é uma pessoa não binária, foi aos 16. Já Emanuel identificou-se como um homem trans aos 17. Eduarda não sabe dizer ao certo quando percebeu ser travesti.

Colaboradores: Gabriella Mattos, psicóloga na Casa1; Tássia Oliveira, psicóloga na Casa1; Anna Paula Oliveira, endocrinologista; Levantamento da FMB/Unesp (2021).

Germinar

 

Por Vanessa Evelyn

 

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Arte por Gabriella Sales e Mariana Catacci

 

Um jovem, recém entrado no ensino médio, via sua imagem refletida no espelho, mas não se envergava naquele corpo. Não entendia quem era e porque passava por tudo isso. Assim foi a adolescência de Pedro Pinheiro, até que, aos 18 anos, teve contato com a questão da identidade de gênero e descobriu o T da sigla LGBT.  Homem trans, Pedro sabe que se reconhecer como tal é parte essencial de sua identidade, que para ele é aquilo pelo qual é lembrado e apresentado. Aquilo que o define como único.

 

Para completar essa definição de identidade, a cientista social, Karen Florindo, explica que podemos entendê-la como características sociais e culturais que são atribuídas a nós. Ela está diretamente ligada ao ambiente ao qual pertencemos e ao lugar que ocupamos na sociedade:  “[diz respeito] sobre outros indivíduos com quem me relaciono, sobre o espaço, a cultura, a história…”.

 

Mas como encontrar a sua identidade quando o ambiente ao seu redor não te representa? Larissa Barbosa viveu isso durante a infância. Estudando com bolsa de estudos em escolas particulares, nunca se sentiu parte do universo das crianças brancas que a rodeavam. Foi no ensino médio, quando passou a fazer parte de um coletivo negro, que entendeu o motivo de não se sentir parte daquele ambiente. Só a partir disso que Larissa percebeu que ser negra era um fator definitivo para a formação da sua identidade. Para além de defini-la, encontrar parte de sua identidade foi essencial para que se sentisse pertencente a um grupo.

 

Essa busca por pertencimento é natural para Karen Florindo, e está ligada ao fato de sermos seres sociais. “A gente está constantemente  buscando espaços de acolhimento onde a gente possa, de fato, ser.”. Esse processo não aconteceu apenas com Larissa. Pedro iniciou sua transição hormonal enquanto fazia faculdade longe da família e durante alguns meses escondeu esse processo de seu núcleo familiar. Ele viu nos amigos LGBT o suporte que precisava e se apoiou nisso. “Você tem certeza que não é o único… Você tem sempre alguém que te entende para estar com você, para te ouvir, para te aconselhar.”

 

Para Larissa e Pedro, a construção e a aceitação de suas identidades foram processos ligados a outras pessoas e vivências. Foi necessário ter ajuda do exterior para compreender o interior.  Karen resume bem esse processo: “todas as trocas sociais deixam ‘marcas’ em nós e incorporamos – consciente e inconscientemente – algumas delas, as descrevendo como identidade. O meio é a estrutura fundamental nessa construção.”.

 

Colaboraram:

Larissa Barbosa — Estudante e parte do coletivo negro Opá Negra

Pedro Pinheiro — Gestor de Eventos

Karen Florindo — Cientista Social e curadora do blog “Lute como uma gorda”

 

‘Fomos feitos para brilhar’

 

Por Caio Nascimento

 

Quatro pessoas transsexuais contaram ao claro! o olhar do outro sobre elas. Rejeição dos pais, acolhimento no mundo das drogas, agressão física e falta de empregos são alguns traços da falta de empatia por essas pessoas no Brasil – país que lidera o ranking mundial de assassinatos transfóbicos, com 868 mortes entre 2008 e 2016, segundo a ONG Transgender Europe. Na luta contra isso, essa população tem se empoderado na busca por direitos e pela superação pessoal. Clique aqui para conferir uma fotorreportagem completa.

Sem por cento hétero

 

Por Leonardo Mastelini

 

 

Maria Lima se apaixonou por uma mulher aos 18 anos. Mais do que isso, continuou gostando de seu namorado na época. “Me intitulava ‘100% hetero’. A partir daí, comecei a sentir atração tanto por homens quanto por mulheres”, diz ela, hoje bissexual, aos 20 anos de idade.

 

Para os especialistas, assumir uma orientação sexual diferente depois de certa idade é natural. “A orientação sexual é construída socialmente, com implicações que afetam a identidade individual e social”, explica o terapeuta Juan Macías ao El País. A psicóloga Eliza de Paula vai além: “Pode haver diversas razões. A pessoa pode ter crescido em um meio repressor e, depois, com um pouco mais de maturidade, criado coragem para assumir sua real orientação sexual”.

 

Esse é o caso de Vinicius Santos, de 30 anos, que se considerou heterossexual até os 21. Depois de quatro anos de namoro com uma garota, o produtor cultural percebeu que não poderia mais silenciar a atração pelo mesmo sexo. “Eu tinha construído algo diferente, com o qual não me identificava. O processo foi de descoberta da identidade”, conta.

 

Vinicius acumulava muitos medos quando decidiu dar a notícia aos pais, depois de ouvir críticas sobre uma cena gay enquanto assistia a um filme com a família. Foram dois anos até que o pai se reaproximasse totalmente, mas o episódio abriu oportunidades para um vínculo ainda mais forte e, principalmente, para o autoconhecimento. “Me entender como LGBT foi importante porque só aí fui saber construir exatamente quem eu era. Isso me fez mais confiante, mais seguro para qualquer coisa”.

 

Sobre o passado, Maria afirma que não voltaria a ser hétero e incentiva quem está em processo de transição. “Só vai. É ótimo, porque é parte de quem você é”. Eliza faz o papel de quem recebe, com frequência, pacientes LGBTs em crise em seu consultório. “Independentemente da orientação sexual, o importante é a pessoa se reconhecer e ser feliz. Caso esteja difícil, procure ajuda. Sempre vai existir alguém para isso”.

 

Ditadura LGBT e feminazi

 

Por Breno França e Thiago Neves

 

golpistascomsombra

Outro dia, depois de algum tempo desviando de vídeos do Olavo de Carvalho e compartilhamentos revoltosos de posts do Sensacionalista, desisti da internet e fui assistir à TV. Entre um canal e outro, um sujeito me chamou a atenção. Lenço no bolso de fora do paletó e tanto gel no cabelo que reluzia as luzes no estúdio. O programa estava só começando.
“Boa noite e bem-vindo a mais um debate sobre temas polêmicos da política nacional. Hoje, recebemos lideranças de ideologias antagônicas para elucidar você, brasileiro, eleitor, cidadão de bem que nos assiste.”
Já ia desligando a TV, mas posterguei um pouco mais o trabalho de segunda-feira quando o apresentador chamou o primeiro convidado. “Gostaria de convidar o deputado Dejair Tiro no Gato, do Partido Moralista das Pessoas de Bem.” Um ex-militar, com cabelo tingido de caramelo, que ficava coçando a própria mão e gritava ao invés de falar.
“Boa noite, Guilherme, e boa noite para os milhões de brasileiros a que nos assistem e que não aceitam a deturpação dos nossos valores por parte dessas minorias que anseiam a uma verdadeira ditadura. Vamos nos levantar e defender a democracia, a família, Deus e a liberdade.” Me senti até constrangido de estar assistindo àquilo sem camisa.
Seus adversários eram pessoas ligadas ao movimento feminista e à comunidade LGBT. Confusos, não sabiam muito bem por que estavam debatendo com aquele sujeito. O apresentador não parecia ser um anfitrião preocupado em deixá-los a vontade e já foi introduzindo o primeiro tema: segurança.
“Os líderes das minorias costumam defender bandidos”, começou o deputado. “Ao mesmo tempo condenam as ações policias e pessoas como o deputado estadual eleito por São Paulo, nosso colega Coronel Telhada, membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Enquanto isso, o trabalhador que paga seus impostos tem medo de sair de casa e ser assaltado por vagabundos menores de idade. Vocês têm algo a dizer a esse respeito? Vão começar a adotar esses bandidos?”
A plateia aplaudiu e surgiu na tela um homem de feições familiares e tom professoral. “Primeiro, eu não defendo ditadura nenhuma…” Nesse momento, iniciou-se um panelaço nas varandas vizinhas com injúrias ao representante, reivindicando liberdade de expressão. Quando pararam, voltei a ouvir o representante LGBT. “De cada cinco assassinatos em São Paulo, um é de autoria da polícia. O próprio ex-coronel citado pelo senhor coleciona 36 mortes em 32 anos de atuação. Os jovens negros são assassinados longe dos holofotes. Outros vão para presídios superlotados, onde passam a integrar a terceira maior população carcerária do mundo. E mais: um homossexual é morto por dia e a homofobia nem é considerada crime. As maiores vítimas da falta de segurança são justamente as minorias e não homens brancos como o senhor. Portanto, se tem alguém interessado em mudar o rumo da segurança, somos nós.”
Rapidamente, o apresentador mudou de assunto e introduziu o segundo tema: educação. A fala continuou com a representante feminista.
“Gostaríamos de elucidar o quanto o sistema educacional é sexista e ineficiente. Nós sabemos que, hoje, as escolas são um dos locais mais ultrapassados da sociedade. A educação dita o que é coisa de menino e o que é coisa de menina. Romper com esse sistema é admitir perder privilégios que o senhor não está disposto, então perguntamos se o senhor é a favor do sistema que nós temos hoje.”
“É claro que não. A educação brasileira tem muito a melhorar. Considero que tivemos uma grande vitória com o veto ao kit gay, que ensinava o seu filho a ser homossexual.”
O representante LGBT interrompeu protestando. “Não dá pra ensinar alguém a ser gay. É um absurdo alguém dizer isso na televisão.” Uma pequena confusão se formou até o âncora retomar o assunto e dar a palavra ao deputado novamente.
“Como já disse antes até no meu programa de defesa do consumidor, os pais que deram uma boa educação aos seus filhos não podem correr o risco de vê-los contaminados por esse tipo de material. A escola tornou-se um templo de doutrinação marxista. Os valores tradicionais foram substituídos pelo comunismo. Esses professores, sempre em greve, não podem continuar influenciando nossos jovens.”
Tamanha foi a salva de palmas que só consegui deduzir que o tema seguinte era saúde pública depois que o âncora mostrou a bolinha que tinha deixado cair no chão pouco antes.
“Hoje em dia, sabemos que ser gay está na moda. As novelas estimulam esse comportamento e seus líderes incentivam essas demonstrações. Fazem uma caça às bruxas em relação àqueles que se posicionam contra essa apologia. Agora, a mais nova tentativa de destruir a família é legalizar o aborto. Uma vez, o saudoso Eduardo Campos declarou que não conhecia ninguém que fosse a favor do aborto e foi condenado por isso. Vocês são a favor dessa permissividade que vai destruir a família brasileira?”
“Nós achamos lamentável que o senhor trate uma questão de saúde pública como uma tentativa de destruir famílias. Merecemos o direito de sermos donas do próprio corpo e, se necessário, interromper uma gravidez indesejada. As mulheres ricas já têm acesso a clínicas que realizam esse procedimento com segurança. Negar isso às pobres é hipocrisia e mais uma forma de exclusão social. Portanto, nós somos, sim, a favor do direito de escolha.”
“Amor, acorda. O MasterChef já vai começar.”
Foi tudo um sonho. Virei pro lado e reconheci o rosto do representante LGBT. Apesar do alívio, percebi que éramos uma ameaça ao deputado. O nosso golpe ainda vai demorar pra acontecer.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

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