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Da morte à vida

 

Por Jullyanna Salles

 

 

Páginas 6 e72

 

Subitamente perdeu a noção de espaço. O ar lhe escapou e sentiu que o corpo ganhava peso. Foi como se estivesse caindo, mas sem se mover um centímetro sequer. Abriu os olhos. Surpresa.

 

Seu primeiro instinto foi olhar para baixo. As pequenas patas haviam se transformado em duas longas pernas. Seu corpo estava bem maior, inegável. Obviamente não era mais o que costumava ser. Inesperadamente, a consciência do que se era tomou conta da sua essência. Mulher. Ela agora era uma mulher. O que isso significava ou o porquê da metamorfose repentina não ficaram claros.

 

Tomada pelo susto, sentiu uma quentura na parte inferior do ventre e percebeu que um líquido vermelho forte, meio viscoso, escorria entre suas pernas. Tocou o desconhecido, sentiu a textura. A sensação tátil que aquele fluido lhe provocava era ótima. A cor era vibrante, realmente muito bonita. Queria expor aquela cor viva, mostrar para outros seres iguais a ela o quão bonito ele era. Sentia uma animação sem igual. Fez força para se levantar -como movimentar-se sem as asas, céus?-, mas foi impedida por um movimento brusco. Algo sólido, externo a ela, a travava. Olhou para o lado e identificou alguém grande, de aparência mais forte e viril que ela própria se tornara. Olhava-a com ar de desconfiança e julgamento enquanto apertava seu ventre e a segurava.

 

“Argh! Que nojo! Olha só, você sujou todos os meus lençóis. Vai se lavar e vê se deixa tudo por aqui limpo também”, disse ele. Não sabia o que era “nojo”, tampouco porque ele a olhava daquele jeito. Estava confusa, então seguiu seus instintos: tocou o líquido novamente e mostrou para ele, que se esquivou violentamente e esbravejou: “você está louca? Tira isso da minha frente. Que brincadeira mais sem graça!”.

 

Sentia dificuldade para expressar seus pensamentos em voz alta, mas conseguiu balbuciar poucas simples palavras: “É bonito. Vou sair”.  Ele se levantou e começou a rir nervosamente. “Sair? Mas você está toda suja de sangue, não pode sair assim! O que deu em você hoje?”. Ele saiu do quarto.

 

Entendia pouco sobre o que estava acontecendo, mas sentia que aquele outro ser que acabava de deixar o cômodo a aprisionava. Por que ele poderia decidir por ela? Queria poder fazer o que tinha vontade. Queria sair dali com aquele líquido tão bonito aparecendo. Parecia-lhe certo. E foi isso que fez. As asas foram embora, mas não ninguém podia impedir que voasse.

A revolução será sangrenta

 

Por Marcelo Grava e Vinicius Crevilari

 

 

ilustração melhor

 

No século XIX, em O Capital, Karl Marx disse que a violência é uma espécie de parteira da história. Todo o sangue derramado para a formação do mercado global capitalista, sugere, seria voltado contra o decadente sistema numa revolução.

 

Para o historiador Oswaldo Coggiola, o marxismo não é “partidário da violência”, mas também não a rejeita de modo abstrato, pois “as classes anacrônicas não costumam deixar o poder pacificamente”. Nestes momentos, ela seria empregada como “legítima defesa” pela classe ascendente.

 

Assim, não se deve encarar a violência como “princípio revolucionário” ou rejeitá-la em absoluto, mas enxergá-la como reflexo da luta de classes em diferentes momentos.

 

A Revolução Francesa, que simboliza a vitória burguesa sobre o sistema feudal, se assentou sobre o peso da guilhotina. No século XIX, as primeiras investidas contra a crescente exploração capitalista foram reprimidas de forma sangrenta pela nova classe dominante, da Comuna de Paris à Primavera dos Povos.

 

Em meio à brutal expansão capitalista, surgiram os socialistas utópicos, que defendiam a supressão gradual e pacífica da sociedade de classes – posição desmascarada no início do século XX pela revolução russa.

 

O terror vermelho e a violência stalinista

Graças a um lento trabalho de oposição revolucionária dentro da social-democracia russa, os bolcheviques tomaram o poder em 1917 com quase nenhum sangue derramado. Mas não demorou para que os soviéticos se vissem cercados por dezenas de exércitos e imersos em uma guerra civil agravada pela Primeira Guerra Mundial.

 

Para muitos, este período em que o Exército Vermelho empregou alto grau de violência sobre os contrarrevolucionários revela a “natureza” violenta do socialismo. Mas, para os bolcheviques, o “terror vermelho” era a legítima defesa do poder soviético.

 

Já a sanguinária ascensão de Stalin, que degenerou o estado operário russo e perseguiu e matou muitos antigos líderes bolcheviques – como Leon Trotsky – não pode ser confundida com a violência revolucionária.

 

A barbárie stalinista não é “legítima defesa” contra a burguesia, pois se volta contra os líderes da própria revolução. Ela não tem respaldo do povo, através dos sovietes, mas de uma direção burocrática, vertical.

 

Século XX e pacifismo

A burocratização da URSS, acelerada pelas revoluções fracassadas no restante da Europa, trouxe consigo pequenos “levantes” ditos socialistas na América Latina que fizeram uso da luta armada.

 

Coggiola aponta que tais lutas não eram amparadas por uma classe revolucionária, como previra Marx e ocorrera na guerra civil russa, mas em “vanguardas políticas autoproclamadas e descoladas das massas”.

 

Graças à degeneração ou deformação dos estados operários (URSS, China etc), no século XX cresceram o ceticismo quanto à revolução proletária e a crença no pacifismo, que nega em abstrato o uso de violência, sem oferecer um caminho concreto para a superação da barbárie capitalista.


Considerando que, no geral, as condições analisadas por Marx  no século XIX se mantêm até hoje, é seguro dizer que a história mostrará se uma transformação radical pode ser atingida por meios idealistas, como a conciliação pacífica de classes, ou por uma luta de massas, dialeticamente amparada nas experiências históricas, e sangrenta se necessário.

Mancha de sangue

 

Por Murilo Carnelosso de Jesus

 

 

Página 9

 

O velho investigador caminhava por volta das 23h em uma estreita viela para pedestres no centro da cidade quando avistou pequenas manchas na parede de um prédio antigo. Já tinham o aspecto um pouco “esfumaçado” de quando se tenta removê-las, mas estavam lá aparentes para a visão atenta do especialista. Para ele, não havia dúvidas: eram manchas de sangue.

 

Retornou ao local às 10h do dia seguinte tomado pela necessidade de entender o que havia acontecido. Não conseguia tirar os olhos das manchas. Tinham formato de uma rajada de pequenas gotas, lembrando muito o padrão de impacto, o que indica algum tipo de agressão. Diferente da disposição caótica comum nos cenários de crimes envolvendo sangue o que dificulta a análise , desta vez, haviam poucas manchas pequenas e longilíneas.

 

Entrou para conversar com o porteiro do prédio. Perguntou ao senhor velhinho e barrigudo se acontecera alguma coisa estranha recentemente. Com olhar desconfiado, respondeu com outra pergunta: “O que seria estranho para o senhor?”.

 

Saiu do prédio para ver a movimentação dos moradores. Em meia hora três pessoas lhe chamaram a atenção. Um rapaz beirando os 30 anos de idade, que foi até bem próximo de onde ele estava com andar despreocupado e voltou rapidamente como se tivesse esquecido algo, mas estranhamente não tornou a sair. Uma jovem moça com olhar desconfiado e passo apressado, que tinha uma mancha roxa perceptível no braço esquerdo, apesar da manga da blusa tentar cobri-la inutilmente. E uma senhora com feição cansada, que antes de sair do prédio olhou desconfiada para os lados e saiu carregando dois grandes sacos de lixo. O investigador até iniciou uma caminhada para tentar segui-la, mas achou melhor voltar à noite. Ela desconfiaria que estava sendo vigiada.

 

Na madrugada se aproveitou do pouco movimento na rua para aplicar luminol nas manchas, que brilharam no escuro com tom azul não tão forte, o que confirmava que se tratava de sangue. Foi ficando mais tenso enquanto media a largura, o comprimento, a direção e a localização de algumas das manchas. Com esses dados aplicados no software em seu tablet, conseguiu identificar o local exato de onde o sangue espirrou na parede. Lembrou-se do começo da carreira, quando estes cálculos eram simulados com cordas coloridas grudadas da parede até o chão. O golpe deve ter sido dado na cabeça da vítima. Isso explicava porque só havia manchas correspondentes a um golpe. Teria sido o suficiente para matar uma pessoa.

 

Enquanto realizava seus cálculos na penumbra da rua, avistou alguém passando rapidamente na esquina onde estava de manhã. Aquele vulto lhe pareceu familiar, mas não conseguiu ver quem era. Foi até lá em passos apressados, mas não havia ninguém na rua perpendicular.


Voltou ainda mais nervoso para próximo do prédio. Abaixou-se para coletar algum resíduo das marcas de sangue e sair rapidamente de lá. Com a amostra seria possível detectar o DNA da vítima. Suas mãos tremiam mais do que o normal, seu rosto suava apesar da brisa fresca da madrugada. Quandou se levantou apressado para ir embora, não teve tempo nem de se virar. A parede estava manchada de sangue novamente.

Cacete de agulha!

 

Por Giovana Feix

 

 

Página 10-3

 

Do desespero alheio, Carla Santos de Oliveira já viu muito nessa vida. Coletora de sangue há quase uma década em laboratórios de São Paulo, a enfermeira de 40 anos já atendeu pacientes o suficiente para entender que medo de sangue é coisa muito séria. Segundo relatos dela e de outros profissionais da área, tem muita, mas muita gente para quem a única coisa comparável ao tal do hemograma parece ser o apocalipse zumbi.
 
Quem trabalha com isso, por tabela, tem muitas histórias para contar. Histórias sobre o medo, sim – mas principalmente sobre como cada pessoa acaba arranjando um jeito único e completamente seu de lidar com ele. Aliás, como explica a psicanalista Paula Salomão, também não há resposta padrão para explicar a origem da fobia: na hora de o medo “nascer”, cada um faz à sua maneira. “Precisamos ter elementos da história do sujeito para entender de que forma a fobia se liga a ele”, explica. “A particularidade está no que o sujeito pode atribuir ao sangue, no caso. Dentro da narrativa dele”.
 
Apesar de não ser psicólogo, o aluno de biomedicina e também coletor Henrique Sokoloski já teve que lidar com os traumas de quem frequenta o Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba. “Um dia, chamei uma paciente e entrou um homem. Olhei na foto da identidade e fiquei confuso: ‘você é a Marina*?’, perguntei. Ele respondeu: ‘Não, ela é minha noiva. Queria saber se posso entrar com ela’. A Marina tinha 28 anos, e, além de acompanhada, entrou na sala de costas e com os olhos tampados. Ela chorava, chorava, chorava”, conta o estudante. “Quando fui começar a falar, eles me contaram que, mais nova, ela apanhava do pai, e sempre saía muito sangue”, lamenta. “Eu fiquei muito chocado”.
 
Ao longo da carreira, Carla também se deparou com muitas cenas inusitadas. Mas, felizmente, sem traumas: depois que passa o desespero, ela costuma inclusive extrair boas risadas da maioria delas. “Uma vez chegou um menino de mais ou menos 10 anos. Assim que fui procurar a veia dele, ele pediu pra parar – disse que precisava fazer um aquecimento. E começou a fazer vários exercícios na sala – abaixava, levantava, sentava, levantava de novo”, conta, sorrindo. “Já em um outro dia, teve uma moça, toda tatuada e cheia de piercings, dizendo que não conseguia nem pensar na agulha dentro da veia, do sangue dela. Ela falou que precisava deitar, fechar os olhos e se concentrar em comidas gostosas”, ri. “Muitas vezes, é só depois que as pessoas fazem coisas assim que elas ficam tranquilas o bastante para fazer a coleta”.
 
Medo de sangue é mesmo coisa muito séria. Mas, pelo menos para quem descobre o jeito certo de contorná-lo, há histórias comprovando que não precisa ser tanto assim; que há, no fim do túnel, uma maneira de manter a tranquilidade. Para quem ainda não encontrou esse caminho, quem sabe a melhor solução seja fazer como a Marina: saber que, até para o apocalipse zumbi que acontece diariamente em hospitais e laboratórios, podemos contar com a ajuda de uma companhia especial.

Laços de sangue(ssuga)

 

Por Bianca Santa Anna Cabellero

 

 

Página 11-1

 

– Mãe! Cadê você?

 

– Olha só quem resolveu aparecer… Finalmente arranjou um tempo para ver como sua mãe está?

 

– Ver como você está? Eu sei muito bem como você está! Está louca, só pode ser!

 

– Ai, Marcos… O que aconteceu agora?

 

– Eu fiquei sabendo de uma conversa que você teve com seu advogado ontem, aqui nessa casa. Não pense que você me engana.

 

– E o que tem a minha conversa com o Carvalho?

 

– O que tem? Você está maluca? Que ideia é essa de deixar suas propriedades pra Maria e pra filha dela? Elas são só duas empregadas dessa casa, seus bens têm que ser dos seus filhos! Eu e o Antônio temos todo o direto sobre eles!

 

– É claro que só isso ia fazer com que você se desse ao trabalho de vir me visitar… Ai, Marcos… Infelizmente, vocês têm todo o direito sobre 50% do que eu tenho … Mas com os outros 50% eu faço o que bem entender e eles vão pra Maria e pra Clara sim, goste ou não, elas são muito mais do que só duas empregadas dessa casa.

 

– Por que você faria isso? O que está acontecendo com você?

 

– Por que eu faria isso, Marcos? A pergunta é porque eu não faria… Você e seu irmão são dois sanguessugas que pegaram o que puderam do meu dinheiro e foram viver a vida de vocês no bem bom! Eu avisei, eu avisei muitas vezes que vocês deviam construir algo próprio porque um dia esse dinheiro fácil ia acabar. Mas vocês não acreditaram, me viram envelhecendo e resolveram esperar pela herança. Vocês não ligam, não visitam, não se preocupam em saber se está tudo bem, só estão interessados em saber quando vão ter esse maldito dinheiro.

 

– Nós somos seus filhos! Esperamos esse dinheiro porque ele deve ser nosso! Não é possível que você ache que faz sentido deixar metade do que você tem para duas empregadas, elas são suas funcionárias, vocês não são sequer parentes, achei que a família fosse algo importante para você!

 

– A família é sim importante pra mim! Mas família é muito mais do que ser sangue do meu sangue, Marcos. Família é apoio, é companheirismo, é, no mínimo, estar presente. Depois de tanta dedicação na criação dos dois, você e seu irmão cresceram e se tornaram dois egoístas, gananciosos, mesquinhos… Nós podemos ter o mesmo sangue, mas há tempos não temos os mesmos valores, não temos uma relação de confiança ou sequer de afeto. Vocês me abandonaram, Marcos, eu criei os dois e vocês me abandonaram…

 

– Isso é uma mentira, a gente sempre liga aqui para saber como você está! E por acaso a Maria e a Clara se preocupam mais com você do que a gente? Elas saõ duas interesseiras, só você não enxerga isso…

 

– Vocês ligam uma vez por mês pra saber se eu já morri e olhe lá, Marcos… A Maria e a Clara foram minhas companheiras todo esse tempo em que vocês não estavam aqui. A vida inteira a Maria me apoiou em tudo, e agora, na velhice, na doença, a Clara é quem se preocupa comigo, quem cuida de mim. Enquanto você e seu irmão se tornaram dois desconhecidos, elas se tornaram filha e neta para mim…

 

– Dona Marta, com licença, desculpa interromper, mas você precisa tomar seus remédios.

 

– Olha aí a sua querida “netinha”! Você acha que a Clara está cuidando de você, mas eu aposto que ela está é te dopando com esses comprimidos! Ela é uma interesseira, uma aproveitadora! E você é maluca de cair nessa, uma velha maluca!


– Marcos, por favor, saia agora da minha casa.

O vampiro da casa ao lado

 

Por clarousp

 

 

Página 12

 

Castiel* desliza a lâmina de uma afiada faca pela pele de uma de suas amadas. Ela geme, aperta os olhos, mas resiste à dor, tanto por compreender a necessidade de seu senhor quanto por saber que sua vontade poderia ser satisfeita de forma mais extrema, mediante uma agressiva mordida em seu pescoço. O vampiro da vida real então encosta os lábios no corte e sorve o sangue que dele escorre. Terminado o ritual, ele permanece quieto por alguns instantes, aproveitando o vigor e a sensação de bem-estar trazidos pela “bebida”.

 

Diferentemente de seus equivalentes de livros, filmes e histórias em quadrinhos, os vampiros da vida real não se transformam em morcegos, nem têm medo de cruzes, e muito menos podem ser abatidos apenas com estacas de prata. E mesmo a principal característica desses seres mitológicos – o hábito de beber sangue humano – não é compartilhada por todos os seguidores do vampirismo.

 

A razão disso é que esse fluido não faz efeito em seres humanos normais ou em “servos” –  que se converteram ao vampirismo por meio de rituais -, apenas nos vampiros “reais”. Nestes, o sangue traz energia e ajuda a combater doenças.

 

Os verdadeiros vampiros possuem superpoderes como força e velocidade extraordinárias, que são ativados em por meio de raiva ou concentração, garante Castiel, que explica que tais características permitem que um deles derrote até 15 homens de uma só vez. Ele conta que tais características já lhe permitiram socorrer amigos e destruir ossos de oponentes em brigas. Mesmo assim, ele assegura que é um homem pacífico, e só teve essas atitudes para proteger aqueles que gosta.  

 

Mas o vampirismo é um movimento que não abriga apenas os que tomam sangue. Jön Klem é um “vampiro abstêmio”. Para ele, a prática é inerente a alguns seres humanos, e pode se encaixar em qualquer religião ou crença. Contudo, ele deixa claro que há muitos posers na área, que adoram convencer os outros de que vivem como Conde Drácula. Identificar um deles é fácil: basta reparar em quem já se apresenta dizendo ser adepto da prática e pede sangue.

 

Existem, inclusive, adeptos da prática que repudiam o costume, como Rebeca Capelato, que adverte para os perigos de saúde sobre o consumo de sangue, como anemia e transmissão de doenças. Na opinião dela, o vampirismo mitológico encanta muitas pessoas com um senso de maturidade baixo, que não conseguem encarar o mundo real.

 

Contudo, tal como na bruxaria, o vampirismo lendário difere do vampirismo real, que é mais “pé no chão”. Este possui diversas vertentes, ligadas aos mundos do ocultismo e do underground. Seus seguidores estudam os hábitos dos seres da ficção e extraem deles princípios e ensinamentos para suas vidas. Muitos também fundem espiritualidade a esses dogmas.

 

Porém, não estimule a imaginação à toa: tais vampiros não vestem longas capas pretas, não moram em castelos no alto de montanhas nem têm caninos superpronunciados. Eles têm vidas comuns, como eu e você. A diferença é que possuem uma crença inusual – mas, até aí, quem não tem?    


*Nome fictício

Trem vital

 

Por Marina Yukawa e Ana Paula Machado

 

Página 2-1

Seis da tarde. Metrô lotado. Marasmo…

 

De repente, um gemido. Ao seu lado, um nariz sangrando.
 
Sangrando apenas não, jorrando sangue. Pequenos respingos mancham sua camisa. O que você faz?
 
Nunca viu tanto sangue sair assim de uma pessoa. E que sangue tão vermelho, tão assustador, tão sufocante! Você desvia o olhar quase que automaticamente, mas algo nele te chama e te obriga a encará-lo novamente. Como algo tão horrível pode ser tão bonito?
 
Enquanto aquele vermelho vivo e quente te hipnotiza, cedem lugar à pessoa sangrando e tentam acudi-la. A sua volta à realidade é brusca e você tem que se segurar para não cair. Tontura… Muita tontura… Ah, o sangue…
 
O sangue para, a pessoa vai embora. Passado o susto, fica o vazio. Você não fez nada, mas o que poderia fazer? O sangue o assustou como assustaria a qualquer um. Engraçado como ele nos assusta… Ele corre por nossas veias, apressado, como trens deslisam por trilhos, nos dando vida a cada novo instante. Está próximo de nós, está dentro de nós, e ainda assim nos causa medo, repulsa, horror. Ah! E como é belo o sangue!
 
Talvez não haja nada tão paradoxal quanto o sangue. É horrível e é belo. É morte e é vida. É destruição e é renascimento. Por mais que o evitemos, nunca sai de perto de nós. Está nas nossas conversas — e aí, sangue bom?! — nos nossos machucadinhos cotidianos, na nossa dieta e na nossa personalidade, nos crimes, nas guerras, nos partos. Ele está em nós e às vezes querem escapar por nossas narinas. Não dá pra fugir.

Família sangue bom

 

Por Quefren de Moura

 

 ilustracao barata

— Aô, sangue! Ele tá pensando que nóis é otário, mais nóis tem sangue nos zóio!

— Ooooooxi! Fala direito, que eu não pus filho no mundo pra falar desse jeito! Eu arranco o sangue do teu couro, moleque!

— Calma, mamita, cê tá com o sangue quente. Fica de boa, só tô trocando umas ideia firme com um broder no celular.

— Adilson, eu não dei o sangue no trabalho o dia todo pra chegar em casa e ouvir filho meu falando assim!

— Ah, mamita, não me chama de Adilson. É Didinho. Desculpa aê. Eu sou firmeza, a senhora tá ligada. Só tiro nota azul na escola. Tá no sangue! Nessa família só tem gente inteligente. Menos a Josi, né?

— Eu ouvi, seu moleque!

“Pum, pa, pa, pum!”

— Ai, ai, ai! É tiro, mainha? A gente vai morrer?!

— Para de ser louca, Josiele! É só o Datena na televisão.

“Exclusivo: eu quero imagens! Marido abusador, sangue ruim, é morto a sangue frio por traficante. Esse aí sangrou até o fim. Batia na mulher, mas agora vai bater só se for no capeta.”

— Ai, mainha, que horror! Tira desse Datena! Ninguém merece essa sanguinolência!

— Eu não tenho sangue de barata, Jô. Agora esse cabra não vai mais tirar sangue da pobre da mulher.

— Credo, mãe! Tira daí! Tô com o sangue gelado, geladinho só de escutar…

— E eu tô com o sangue é fervendo de raiva de tu, Josiele! Vem aqui me explicar esse boletim mais vermelho que sangue! Ou eu vou fazer esse sangue sumir da tua cara rapidinho!

— Ah, mãezinha, matemática não é meu forte, e, tipo assim, a profe é do mal, né? Ela só quer o nosso sangue, isso sim!

— Josiele, para com essa cabeça avoada. Parece que tu não conhece a mãe que tem! Eu tenho sangue na veia!

—  Pô, mãe, cê sabe que lá na escola só tem encostado e sanguessuga. Um bando de ordinário. Ninguém me ajuda e eu não consigo aprender a matéria!

— Filha, tu não tem sangue azul nem nasceu em berço de ouro. Trata de estudar! Ou você quer suar sangue todo dia, que nem sua mãe? Eu não quero ver vocês sofrendo na vida que nem eu!

— Fala se essa mamita não é zica? Mamita sangue bom, firmeza memo!

— Ai, valha-me Deus padre, me põe no chão, moleque da moléstia. Cê tá maior que a mãe! E Josi, filha. Aprender não é sangria desatada. Tenha calma, menina de Deus! Tem que estudar!

“Pum, pa, pa, pum!”

— Ai, ai, ai, mainha do céu, agora sim é tiro! A gente vai morrer!

— Para de ser doida, Josiele! É só o Datena de novo.

“Põe na tela pra mim essa poça de sangue! É sangue mesmo? É sangue Brasil, um banho de sangue!”

— Aumenta esse volume, meu filho! Vão mostrar sangue!

— Ô, mainha do céu, crê em Deus Pai! Tô tremendo mais que vara verde! O sangue de Jesus tem poder!

 

 

Expressões usadas:

“sangue” = parceiro, amigo

sangue nos zóio = pessoa obstinada

arrancar o sangue do couro = espancar

sangue quente = ser facilmente irritável, agressivo e impetuoso

dar o sangue = esforçar-se

estar no sangue = família, linhagem, parentesco

sangue ruim = pessoa malvista

sangue frio = ausência de compaixão

sanguinolência = excesso de violência

não ter sangue de barata = não ser apático, fraco

tirar sangue = bater

sangue gelado = pavor, medo

sangue fervendo = fúria, raiva

ter sangue nas veias = ser propenso a reação exaltada

querer o sangue = exigir em demasia com intenção de prejudicar o outro

sanguessuga = aproveitador

sangue azul = aristocracia, elite

suar sangue = esforçar-se muitíssimo; trabalhar arduamente, até a exaustão

sangue bom = pessoa confiável, admirável

sangria desatada = agir com urgência, imediatismo, de forma descuidada

sangue congelar = tomar susto

banho de sangue = chacina

“O sangue de Jesus tem poder” = no cristianismo, o sangue derramado por Jesus para salvar a humanidade

 


Confira também os integrantes desta edição do Claro! participando de uma competição de mímica. Será que a autora do texto se sairá melhor que seus colegas?

 

Hemácias precisam comer

 

Por Marcela Campos

 

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Perder peso é fetiche. A gente sabe que essa vontade não nasce conosco – em que ponto da vida você se tornou consciente da gordura que carregava? Ninguém sabe que é gordo até que seja notificado de tal. E aí, meu bem, aí não tem quem segure: na falta de pros na lista de pros e contras do sobrepeso charmoso, não há argumento possível que te faça ser aceito na panelinha do mundo que não seja “eu sei, estou de dieta”.

 

Sorte sua se o seu sangue for tipo O e você tiver uma desculpa pra gastar em bacalhau fora de épocas pascoais.

 

Explico: se você fizer melhor que a encomenda e não só disser que está de dieta, como  que está fazendo a moderna dieta do tipo sanguíneo, deve, por direito, ganhar uma verba mensal pra comprar o peixe, além de carne de carneiro e óleo de linhaça. E cada tipo sanguíneo tem seus alimentos recomendados – seu corpo deve funcionar melhor e seu emagrecimento deve ser mais eficiente se você comê-los.

 

Não pretendo aqui governar verdades absolutas sobre teu corpo, até porque já tem pesquisa dizendo que isso tem nada com nada e não há evidência de que essa dieta funciona.

 

Bebê, tire suas próprias conclusões.

 

Tipo O

 

Será que são raivosos estes? Ansiosos? Cheios de gastrite? Talvez não. A questão é que produzem muito suco gástrico.

Proteína animal? Com certeza, mas, veja bem, carne bovina ou a chiquetosa carne de carneiro. Bacalhau também pode. Junto da mistura, delicie-se de abóbora, brócolis, batata-doce banhados no azeite ou no óleo de linhaça.

De sobremesa vai uma frutinha: ameixa, figo, goiaba. A que estiver mais bonita na banca da feira.

Lactose? Nada.

 

Tipo A

 

Quase nada de suco gástrico, quase nada de proteína animal. Quase lactovegetariano, não fizesse a lactose mal pra eles também.

Se no café da manhã a aveia cai bem, no almoço o salmão e o bacalhau aqui podem trazer benefício, e dá pra juntar a cenoura, a couve, a lentilha e até o feijão azuki, bonito de se ver.

Cereja, limão, damasco e amendoim são luxos, junto com vinho tinto e café. Aproveite.

 

Tipo B

 

Vem, lactose! Aqui fazes a festa. Até a coalhada tem lugar no prato.

Se come até sardinha, pode economizar nas compras, mas, se optar pelas carnes, preste atenção: carneiro e cordeiro são indicados, mas não vão sair baratos.

Vá de curry, salsa e raiz-forte pra temperar o inhame, a beterraba, a berinjela e o feijão mulatinho.

O abacaxi pode finalizar, trazendo doce pra boca, assim como a banana, a melancia, a papaia. Uh, a papaia!

 

Tipo AB

 

O melhor de dois mundos. Coisa linda! Mas sem carne, hein? Se não resistires, fica no carneiro e no cordeiro. Ou no peru.

Só pra ti o arroz faz bem – seja branco, integral… Acompanhado de couve-flor, acelga e, veja só, soja! Atum, salmão e sardinha também estão no jogo. Ah, e abuse dos laticínios!

Vinho tinto é o luxo. Aproveite.

Sangue vivo

 

Por Pamela Carvalho

 

 

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Subitamente perdeu a noção de espaço. O ar lhe escapou e sentiu que o corpo ganhava peso. Foi como se estivesse caindo, mas sem se mover um centímetro sequer. Abriu os olhos. Surpresa.

 

Seu primeiro instinto foi olhar para baixo. As pequenas patas haviam se transformado em duas longas pernas. Seu corpo estava bem maior, inegável. Obviamente não era mais o que costumava ser. Inesperadamente, a consciência do que se era tomou conta da sua essência. Mulher. Ela agora era uma mulher. O que isso significava ou o porquê da metamorfose repentina não ficaram claros.

 

Tomada pelo susto, sentiu uma quentura na parte inferior do ventre e percebeu que um líquido vermelho forte, meio viscoso, escorria entre suas pernas. Tocou o desconhecido, sentiu a textura. A sensação tátil que aquele fluido lhe provocava era ótima. A cor era vibrante, realmente muito bonita. Queria expor aquela cor viva, mostrar para outros seres iguais a ela o quão bonito ele era. Sentia uma animação sem igual. Fez força para se levantar -como movimentar-se sem as asas, céus?-, mas foi impedida por um movimento brusco. Algo sólido, externo a ela, a travava. Olhou para o lado e identificou alguém grande, de aparência mais forte e viril que ela própria se tornara. Olhava-a com ar de desconfiança e julgamento enquanto apertava seu ventre e a segurava.

 

“Argh! Que nojo! Olha só, você sujou todos os meus lençóis. Vai se lavar e vê se deixa tudo por aqui limpo também”, disse ele. Não sabia o que era “nojo”, tampouco porque ele a olhava daquele jeito. Estava confusa, então seguiu seus instintos: tocou o líquido novamente e mostrou para ele, que se esquivou violentamente e esbravejou: “você está louca? Tira isso da minha frente. Que brincadeira mais sem graça!”.

 

Sentia dificuldade para expressar seus pensamentos em voz alta, mas conseguiu balbuciar poucas simples palavras: “É bonito. Vou sair”.  Ele se levantou e começou a rir nervosamente. “Sair? Mas você está toda suja de sangue, não pode sair assim! O que deu em você hoje?”. Ele saiu do quarto.

 

Entendia pouco sobre o que estava acontecendo, mas sentia que aquele outro ser que acabava de deixar o cômodo a aprisionava. Por que ele poderia decidir por ela? Queria poder fazer o que tinha vontade. Queria sair dali com aquele líquido tão bonito aparecendo. Parecia-lhe certo. E foi isso que fez. As asas foram embora, mas não ninguém podia impedir que voasse.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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