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EDITORIAL – Endorfina Paulistana

 

Por clarousp

 

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Um dos atores do produto jornalístico é o público. E é em seus interesses e demandas que devemos pensar ao escrever.

Nessa edição do Claro! buscamos trazer um viés um pouco diferente de algo que nós todos temos em comum: São Paulo. Falar sobre essa cidade é conversar um pouquinho com todos os leitores. Mas mais do que a cidade em si, falamos sobre o sentimento de viver aqui e as experiências que todo paulistano passa.

São Paulo é uma versão brasileira da cidade que nunca dorme. A agitação, a pressa e a efervescência tão características da cidade causam uma espécie de vício em quem vive aqui. O estresse vira uma dependência. Você descobre que está bem adaptado a cidade quando viaja e a abstinência te incomoda. Quem vive aqui está sempre buscando mais e mais rápido, até nos momentos de lazer. São Paulo é extremos, é limite, é 40º.

Porém, quão grande seria o erro se o Claro! fosse apenas lúdico. Como então encontrar identificação com aqueles que enfrentam tantas dificuldades nessa cidade? Não dá pra passar sem falar o preço que essas mesmas oportunidades cobram. Portanto, há que se pensar no que é relevante, no que é atual, no que de fato tem algum impacto na vida do paulistano. Para representar isso, então, buscamos temas atuais e abordagens diferentes daquilo que todo mundo sabe que pode encontrar aqui.

Para além de pensar no conteúdo, devemos nos preocupar com a forma. O formato, as imagens, as ilustrações, a diagramação e a escolha de palavras têm como objetivo transmitir ao leitor o sentimento total do tema. A experiência para além da informação, esse sentimento que começa com uma repulsa, passa por uma aceitação e no fim vira até amor.

A dor e o prazer de viver em São Paulo é o que nos guia nessa edição. São Paulo provoca em seus moradores um efeito estranho. É aquela coisa de “só eu posso falar mal… e eu falo mesmo”. Sabemos que essa agitação, essa pressa, essa efervescência pode acabar nos matando, mas sem ela a gente não tem adrenalina e a vida na cidade não tem graça.

Por isso, essa edição do Claro! é um convite. Entre pelas referências históricas de São Paulo. Esbarre nas contradições dessa cidade que alaga e falta água. Fique pra ver o preço do progresso, mas desfrute das redefinições de espaço que só acontecem aqui. Aí então mergulhe na diversidade que essa cidade tem e na história das pessoas que ajudam a contar a própria história paulistana. Depois venha sentir adrenalina, pressão, medo. Venha ver o quanto essa atmosfera transforma para o bem e para o mal. Encerre sua viagem tentando entender a complexidade da situação e voltando ao seu lugar de personagem absolutamente indispensável no meio da multidão.

Seja bem-vindo à São Paulo e volte sempre.

Vidas Secas

 

Por Maria Alice Gregory

 

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Tinha uma árvore no meio do caminho

 

Por Ana Carla Bermúdez

 

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Por enquanto, acho que eu escapei. Mas talvez seja só por enquanto, mesmo. Quando aqueles moços chegaram aqui, com seus capacetes de segurança sobre as cabeças e uma vontade incontrolável de seguir com a modernização e o avanço – sempre tão necessários -, pensei que seria o meu fim. Eu, que fui semeada, nutrida, cresci e floresci neste famoso quarteirão da rua Augusta entre a Caio Prado e a Marquês de Paranaguá, mas que nunca fui notada de verdade. Passei aqui minha infância e adolescência, me tornei um grande e maduro pé de jacarandá com galhos vistosos que alguma criança volta e meia gostava de escalar. Se servi de brinquedo, de abrigo para sabiás ou se fui apenas um enfeite, parece que nada mais disso importa. Hoje estou cercada, abandonada, ameaçada. Sou mesmo é um obstáculo, um verdadeiro pedaço de pau no meio do caminho.

O estado de São Paulo já foi só floresta, ocupado por uma variedade imensa de plantas e animais. Mas, com o tempo, os mais de 17 milhões de hectares de Mata Atlântica originais daqui se transformaram em menos de dois. E, apesar de fazer parte de um dos últimos respiros dessa vegetação, sigo ao relento. Construir torres luxuosas bem no coração da capital, para alguns, é muito mais vantajoso. Me utilizar como moeda de troca, então, é coisa corriqueira. “Constrói uma torre a menos ali, diz que vai deixar 60% da área pra uso público”, negociam entre eles. Ah, mas se dinheiro nascesse em árvores, a situação seria bem diferente…

Bom, eu também fui inocente por chegar a imaginar que poderia ser de outro jeito. Até houve um tempo em que éramos só nós, cedros-rosa, embaúbas, figueiras, jeribás e pitangueiras. Mas foi a civilização chegar que a chacina começou. Demos lugar às casas, que depois foram substituídas pelos prédios, e a coisa foi ficando tão absurda que até mesmo os prédios deram lugar a novos e mais modernos edifícios – e a shoppings, e a supermercados, e a condomínios de luxo, e a ainda mais shoppings, até chegar ao incrível número de existirem, hoje, 53 deles distribuídos pela capital. E eu cada vez mais cercada por olhares vindos de cima, cada vez mais encurralada. Mas, como de costume, jamais observada.

Chega a ser irônico eu estar, agora, dentro de um terreno cercado por tapumes de madeira. Madeira que pode ser de uma irmã minha que estava no quarteirão de baixo há uma semana ou até mesmo das senhoras cinquentenárias que foram cortadas do Vale do Anhangabaú há mais ou menos um mês, na calada da noite.

Um dia desses ouvi um pessoal conversando aqui perto dizendo que São Paulo tem, 111 parques e áreas verdes. A princípio, pensei que fosse um número razoável. Mas a questão é que, ao mesmo tempo, a cidade tem mais de 4100 hotéis, 6 mil academias de ginástica e 20 mil bares. É como se o cenário fosse o de um grande cemitério, onde os prédios são, na verdade, enormes mausoléus. E eu, ali no meio, sinto que sou a próxima detenta na fila do corredor da morte. Não é fácil sobreviver quando estamos cercadas: se estamos fortes, o progresso nos atropela; se estamos fracas, somos ameaças. Encontramos de tudo, menos misericórdia. A metrópole nos engole e não descansa nem mesmo quando o assunto é destruição.

O cinza do elevado, a vida no calçadão

 

Por Thiago Neves

 

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Quando era criança ia muito ao Rio de Janeiro. Detestava ir à praia, meus pais também, mas a gente ficava horas sentado em um daqueles bancos de pedra, de costas para o mar, vendo as pessoas passarem. Achava o máximo fazer isso aos domingos, o calçadão de Ipanema se expandia, uma das pistas da Vieira Souto era – e ainda é – tomada por bicicletas, cachorros, pessoas andando de patins, gente correndo e brincando com os filhos, tinha muita coisa pra eu ficar admirando.

Quando fiz 18 anos saí de Belo Horizonte, e dessa vez não iria para o Rio, mas pra São Paulo. Nos primeiros meses vivi em um hotel logo abaixo do Minhocão. Naquela altura, o que me incomodava sobre o Elevado Presidente Artur da Costa e Silva não era a brutalidade da construção, mas quem ela homenageia.

Depois de um tempo fui aprender que a obra foi iniciada em 1969, por Paulo Maluf, quando Costa e Silva era Presidente.

Em conversas, o Elevado foi sempre alvo de críticas ferozes, justificadas, é verdade, mas em poucos momentos ouvi qualquer elogio à aventura arquitetônica de Maluf. Na verdade, nem sei se é possível se falar em arquitetura ao descrever o Minhocão, a via elevada é uma obra de engenharia bruta, que nada resolve o problema do trânsito, além de exercer um incontestável impacto na paisagem urbana da cidade.

Até que escutei uma história de que a via fica fechada para carros entre 21h30 e 6h30. Ah, e aos domingos também – igual a Vieira Souto. Um dia ouvi alguém falando que, aos domingos, quando o Minhocão fica inacessível aos veículos, um grupo de pessoas faz do entulho arquitetônico uma praia. Aparentemente, levam cadeiras de sol, sunga, frescobol, até churrasco. Me interessei.

Fui em um domingo nublado, quando cheguei à Praça Roosevelt, admiti a possibilidade de não conseguir comprovar a tal história. Olhando da ponta, achei linda a cena das pessoas entrando no Elevado em bloco, em um ritmo líquido, viscoso, devagar. As formas eram diversas: cachorros, bicicletas, carrinhos com crianças, pessoas se exercitando, uma grande manifestação de vida. A obra, a cada metro que aquele fluxo avançava, evidenciava mais sua dureza, cada vez mais cinza, a cada passo mais deslocada naquele cenário.

Os edifícios que margeiam o Minhocão são mais antigos que a homenagem a Costa e Silva, portanto, quem passa por ali conseguiria ver toda a privacidade de um morador. Por causa desse desplanejamento, as janelas voltadas para o Elevado são todas vedadas ou foscas. Elas sugerem um silêncio incômodo, de uma cidade que se fecha.

No entanto, ao me voltar para quem passeava, percebi que havia muito a ser visto, muitas hitórias, gente que sai de casa todos os domingos pra levar o filho para passear, ou o cara que aproveita para se exercitar. Em um dos edifícios, um grupo de teatro apresentava um espetáculo para quem passeava ali que talvez nem precisasse existir. Apesar de não fazer sol, não sentir em nenhum momento o cheiro de protetor solar, nem ver ninguém de sunga, as pessoas estavam lá.

Acho que mudei pra São Paulo justamente por saber que aqui não tem praia, mas, surpreendentemente, encontrei na cidade o que tinha de favorito no Rio, a possibilidade de observar as pessoas no calçadão. O Minhocão – que talvez até vire parque – não tem a praia ao lado, tem muitas histórias, de alguns erros e de uma contradição barulhenta e cinza. Talvez sinta saudade dos bancos cariocas, mas confesso que ainda quero ver as pessoas que tomam sol no Calçadão Presidente Artur da Costa e Silva.

A feira, cherri e a rifa

 

Por João Paulo Freire

 

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Pááá! Aquele homem baixo e de olhos puxados se concentrava em bater o facão contra a mesa como se estivesse com raiva. Ao me aproximar da barraca, ficou claro que, na verdade, ele preparava, e com muita destreza, pedaços de peixes para vender ali mesmo. A procedência do produto parecia boa, não fosse o odor que tomava todo o ar daquela parte da feira, lotada, às dez da manhã de um domingo abafado.

A cena poderia estar se repetindo em vários lugares de São Paulo naquele momento. Cada distrito da cidade tem sua própria feira livre, e alguns têm duas ou mais delas. Espalhadas pela maior cidade do país, as 873 feiras cadastradas junto à prefeitura, especificamente à Secretaria de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo, são conglomerados de muita gente, Claro!, mas também de produtos que, em sua maioria, vêm de longe da cidade. Além de toda a gritaria, das cores e do empurra-empurra.

– Um quilo de sardinha, por favor.

– É pra já freguesa!

Havia também muita água escorrendo pelo chão, água que corria até a sarjeta e que, no caminho, aspergia na calça ou na canela de quem passava correndo à sua frente com um carrinho de feira.

– Ai o meu pé, caramba!

– Olha por onde passa, pô – iniciava-se uma discussão entre aquele grupo de pessoas que tinham seus carrinhos presos um no outro num corredor apertado, depois de uma senhora passar apressada.

A três barracas do peixe, estava a banca das hortaliças. Era um verde só! A água que sobejava no japonês faltava para a acelga, couve e alface. Certamente, também faltava água nas plantações de onde vieram a colheita: um maço de rúcula por oito reais! E o vendedor ainda insistia aos berros:

– Olha a melhor alface, a melhor escarola!

Andando mais pra dentro da feira, cinco crianças agitadas, de no máximo seis anos, estavam acompanhadas por um homem paciente que era pai ou tio de todas elas. As crianças disputavam o DVD de um desenho, Peppa Pig. Giovana, a maior de todas, ganhou a disputa e foi embora pra casa com o DVD na mão, mas sem fruta alguma.

– Vocês só vão assistir depois do almoço! – exclamou o homem.

Passando em frente aos DVDs, um carrinho entulhado de frutas era arrastado por uma mulher na casa dos 30, acompanhada de sua poodle branca. Aquilo comoveu as crianças. Os pequenos queriam saber o nome da cadela e partiram para brincar com ela.

– O nome é Cherry – respondeu a dona às crianças, com muita pressa, batendo sacolas em todo mundo que passava ao lado.

O que essas crianças não sabiam é que ir à feira com o pai ou tio apenas pra comprar um DVD pirata nem sempre foi uma opção possível. Quando surgiram na cidade, por volta de 1687, as feiras vendiam apenas “gêneros de terra, hortaliça e peixe”, como conta a Prefeitura, e não DVDs e quinquilharias. Hoje, vendem coisas como roupa íntima, correia de chinelo, borracha da tampa da panela de pressão, relógio e rádio de pilha. Naquela da rua Carneiro da Cunha, bairro da Saúde, zona sul, não era diferente.

Outra coisa que aquelas crianças também não sabiam é que se a barraca das hortaliças está antes da barraca do melão – que custava dez reais a unidade! – é porque o dono das hortaliças se cadastrou na prefeitura antes do dono dos melões. As bancas (registradas) estão todas dispostas em ordem cronológica ao seu cadastramento. Aquela bagunça de gente gritando pra todo lado, carrinho atropelando todo mundo, fruta jogada no chão não estava desse mundo.

– Um melão, dez reais. Leva três, paga vinte!

O vendedor da mais colorida das 188 bancas da “Feira Bosque” exibia uma peculiaridade em sua mesa. Junto ao cordão usado para estender os papéis com os preços das frutas, aquele mesmo que a mãe usa para fazer de varal, estava enganchado, sem preço, um ovo de Páscoa Diamante Negro, 750 gramas.

Era estranho que aquela embalagem preta chamasse mais atenção do que maças e morangos vermelhos, abacaxis e bananas amarelos, mexericas e laranjas laranjas, que eram vendidos lado a lado. O colorido das frutas deveria, isso sim, chamar a atenção.

Seria muito estúpido deste repórter perguntar se o ovo estava a venda e quanto custava? Sejamos estúpidos, então: era uma rifa para a Páscoa. Cinco reais por cada nome.

Aquela era a prova de que muita coisa tinha mudado desde que as feiras livres foram oficializadas em 1914 pelo prefeito Washington Luiz. No município, a primeira feira contou com 26 feirantes no Largo General Osório e a segunda, no Largo do Arouche, teve 116 deles. Hoje, para abrigar esse batalhão de vendedores, existem, além das feiras, 15 mercados municipais, 17 sacolões e cinco mercados de flores em toda a cidade de São Paulo.

Quem são esses profissionais que trabalham vendendo frutas e tudo mais pra gente que talvez nunca tenha plantado nada na vida? Moram longe, alguns nos extremos mais inacessíveis da cidade, acordam antes do dia nascer, cantam pra chamar a atenção dos clientes, inventam bordões e, em alguns casos, trabalham todos os dias da semana. Gente trabalhadora e muito criativa!

– Mulher bonita não paga, mas também não leva! Duas dá uma jarra, três dá um balde! – sobre as laranjas.

Vindo das últimas barracas, o bafo quente, o cheiro de tomate, o barulho da gordura fritando o pastel podiam ser sentidos de longe e denunciavam o fim da expedição. Uma fome! Qual outra forma de acabar a ida à feira que não parar na barraca do pastel, sempre tocada por uma família de orientais?

  • Um pastel de pizza, por favor.

A hora de ouro

 

Por Ana Carolina Leonardi

 

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A atmosfera do horário de pico é, em grande parte, sonora. Motores roncam, gerando energia mesmo que os carros não avancem um centímetro. As buzinas também são frequentadoras eventuais do cenário. Parecem expressar o descontentamento dos motoristas impotentes, mas não se destinam a ninguém específico. Entre carros congestionados, não há culpados, só vítimas.

A sinfonia do tráfego passa despercebida pelos ouvidos, que se acostumam rápido. Mas o corpo reage, alerta, como em uma cena de guerra. Um som, porém, se destaca, um grito que aflora da massa monótona. A sirene vermelha desperta os olhos mesmo na constelação de faróis acesos. Exclama perigo e exige passagem em meio à cena intensa e imóvel.

A visão da Estrela da Vida, símbolo da emergência médica, muitas vezes gera aflição, mas não movimento. Para o pedestre que vê o resgate ao longe, talvez paire uma onda de estranhamento, ao ver estático o veículo da qual depende o ritmo da vida de outra pessoa.

A posição do motorista à frente da ambulância é menos passiva, mas nem por isso menos angustiante. “Pouca margem de manobra” deixa de ser metáfora. Há ainda a incerteza do que é permitido e o que é contra a lei para abrir caminho ao resgate.

Dentro da viatura, o tempo passa de trás para frente. A ocorrência marca o início da chamada Hora de Ouro. Receber o tratamento definitivo na primeira hora depois de um acidente traz maiores chances de sobrevida.  O desafio é acomodar a chegada no local, o atendimento e o transporte ao hospital nesse tempo. A recompensa é um melhor prognóstico. E o antagonista constante é o trânsito.

Há 15 anos, esse turbilhão é rotina para Gisele Rossi. Ela é enfermeira da tropa de elite do atendimento médico a desastres, o Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências. No quartel da Casa Verde, os bombeiros brincam sobre sua nova cor de cabelo. A intimidade vem de um longo tempo de trabalho lado a lado: eles tripulam a Unidade de Resgate e os enfermeiros e médicos, a Unidade de Suporte Avançado (USA).

O tormento de Gisele nas viaturas travadas é o rádio, que anuncia a gravidade de casos que ela é capaz de socorrer, mas não consegue alcançar. O Mar Vermelho de carros se abrindo perante o resgate é uma raridade. Na maior parte dos dias, impera a inércia do lado de fora.

“O trânsito é sempre um vilão no resgate”, ela afirma. Mas é difícil apontar um caso específico que traz indignação contra o problema. Não é que o assunto não tenha importância: mas quando se mata um leão por dia, já se sabe o tamanho e a força do animal. O que importa é a forma de combatê-lo.

A praticidade toma o lugar da emoção na luta contra o congestionamento. A questão não é o quanto se sofre com o problema, e sim as estratégias para combatê-lo. Como um ferreiro que trabalha a marteladas, o trânsito paulistano molda o serviço de resgate à sua maneira. Adequou as USAs à sua imagem e semelhança: há 6 anos, as ambulâncias foram trocadas por viaturas rápidas. Menores, se deslocam com mais fluidez. Não transportam o paciente – depois de atendê-lo e encaminhá-lo ao hospital, se dirigem à próxima vítima, para fazer valer ao máximo a mais uma Hora de Ouro.

Se a vivência diária da pressão e da pressa amortecem a percepção da intensidade do trabalho, nem por isso a adrenalina do serviço é ignorada. Faz parte, até, de um “quê” sedutor da tarefa. “Na Marginal Tietê, você pega um carro. A 100 km/hora. Na contramão. Nunca vai haver uma sensação dessa em outro trabalho. A gente vai para as cabeças. Pegar veia, entubar os pacientes, fazer uma pequena cirurgia. Isso no chão, na rua”, Gisele relata.

O descontrole das emoções é o grande inimigo da precisão decisiva do ofício. Com a experiência, a concentração supera e suprime as outras reações para garantir o sucesso da tarefa. Se soa como se o atendimento fosse feito em piloto automático, nada mais ilusório. As consequências de trabalhar entre o limite da vida e a morte são só adiadas. O impacto emocional vem à tona depois. O equipamento fica no quartel, mas algumas histórias voltam para casa, invadem o pensamento. “Falam que somos frios. Não é frieza. Talvez seja uma carga de maturidade e de controle que permite fazer o que é preciso. Depois você até desaba. Mas naquele momento, alguém tem que fazer, e somos nós”.

Mesmo que as marcas do dia anterior não tenham ainda desbotado, o dia seguinte chega atropelando com suas novas demandas. E em mais uma manhã que começa no quartel, a atmosfera, como no horário de pico, também é sonora. É a expectativa do soar do alarme e do chamado do rádio. É a sirene que rasga o silêncio. São Paulo chama, e ela não é das cidades mais pacientes.

Temos que pegar

 

Por Thaís Matos

 

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Saio do trabalho às 17h, depois de um dia de muito cansaço e encheção de saco, metas, espiadas no Facebook, quem é o líder do BBB, mais metas e mais encheção de saco. Voltar pra casa é tudo que eu mais quero na vida. Mas eu e outros 4 milhões de pessoas que usam o metrô de São Paulo diariamente ainda temos um último desafio: enfrentar a superlotação.

Nesse horário o número de pessoas parece ainda maior. Chego na estação, procuro meu Bilhete Único na bagunça da minha bolsa e não demora muito pra se formar uma fila atrás de mim. Três pessoas batendo o pé, olhando impacientes, murmurando alguma coisa. Me apresso.

– Vai logo, vai logo. Pega esse bilhete. Acorda!

Finalmente passo pela catraca. Mal consigo andar do outro lado.

Com paciência vou progredindo na fila até chegar à escada rolante. Aaaai! Sou empurrada por um apressadinho e me desequilibro. Esbarro em outras pessoas e já vou me desculpando. Desço um lance de escadas e a multidão só aumenta. Impressão minha ou está mais quente aqui dentro? Sou empurrada mais três, quatro vezes. À próxima pessoa que tenta furar a fila já dou uma cotovelada.

– Aqui não, queridinho!

Ele balbucia algumas coisas enquanto me olha de cara feia.

– Eu tô atrasado.

– Atrasado pra chegar em casa? RESPEITA A FILA – eu grito.

– É! Respeita a fila. – Tá todo mundo com pressa. – Olha a moça. Tenha mais cuidado. – Ai, como as pessoas são mal-educadas aqui, né? – Todo dia tem um filho da puta querendo levar vantagem. – O governo tem que dar o exemplo. – Também, com a inflação do jeito que tá…

Pokemon, eu escolho você!

Depois de alguns lances de escada e muita gente folgada, não existe mais paciência, muito menos gentileza. Conforme as pessoas vão se distanciando da superfície parece que também vão perdendo a noção da realidade e a transformação começa. Apagam-se as luzes da sanidade e salve-se (ou sente-se) quem puder.

A ÁREA PRÓXIMA ÀS PORTAS É RESERVADA…

Ninguém escuta mais nada. É gente correndo, empurrando, amassando. Conforme vamos nos aproximando da plataforma, o desespero aumenta e os Pokemons vão ganhando mais poderes. Dois corpos ocuparem o mesmo espaço é claramente possível para eles. Seus rostos franzidos, fechados, são rostos de quem vai pra guerra. Sai da minha frente que eu quero passar.

E passa. Quando o primeiro metrô passa a transformação já está completa. Os Pokemons assumem diversas formas. Saltam, voam, atropelam os semelhantes. Claramente não cabe mais ninguém. Todo mundo já está espremido sendo obrigado a ficar com a cara na axila de fulano, ou com o braço encostando nas partes de beltrano. Para entrar no vagão, vale tudo. Ele gruda no cabelo da coleguinha e fica aboletado ali. Miga, nós vamos conseguir juntas! – ele pensa.

Alguns enfiam metade do corpo, ficando com um braço e uma perna pra fora. Como se os minutos extras que o trem fica parado na estação até a porta se fechar fossem magicamente abrir um espaço e fazê-lo caber ali. E o pior é que por alguma super habilidade o danado se enfia.

Dentro do vagão encontram-se diversas espécies. Tem sempre um Charizard soltando fogo. Ele fala alto. Reclama do calor, do fedor, das pessoas encostando. Sempre há também um Squirtle: carregando sob o casco duas bolsas, três mochilas, sete sacolas. Batendo na cara de todo mundo enquanto corre – sempre correndo – pra pegar aquele metrô. E tem que ser aquele. Não pode ser um igualzinho que passa três minutos depois. Outros insistem em parar bem na porta. Já fica ali garantindo a descida daqui a 14 estações, e se você falar alguma coisa, ele solta raios e trovões.

PRÓXIMA ESTAÇÃO PARAÍSO

No meio da pancadaria entre diversas espécies e evoluções dos Pokemons, entra uma grávida. HUMANA!,  apita o sinal da cabeça dos bichinhos. Logo eles abrem espaço, se apertam daqui, empurram dali, escorraçam o Bulbassauro sentado pra dar lugar à mestra. Parece que só ela é realmente capaz de acalmar os ânimos. Talvez porque quando a vejam se sintam humanos também. Existe amor em SP?

AGRADECEMOS A COLABORAÇÃO

 

Arcos e flechas

 

Por Rafael Bahia

 

Arcos e flechas (4) (Crédito_ Coletivo Vie La En Close)

Rafael Hayashi prende os cabelos longos, compridos e negros em um coque por trás da cabeça. Com as têmporas raspadas e os olhos puxados como seu sobrenome sugere, ele parece mesmo um samurai. Ao menos é assim que brinca Enivo, ele também com os longuíssimos dreadlocks atados à nuca. Mas, por mais marcantes que sejam, não foram essas as feições que estiveram sob os holofotes midiáticos poucos meses atrás.

Os dois artistas estão por trás de uma das obras que estampam os vãos dos Arcos do Jânio, ali na avenida 23 de Maio. As famigeradas feições são aquelas de um grafite ilustrando o que era para ser um homem negro, mas acabou interpretado como um retrato do ex-líder venezuelano Hugo Chávez. Os grandes veículos de imprensa logo se apressaram a contatar Hayashi para a a fatídica pergunta: era ou não era?

“Foi sem querer querendo”, ri Enivo. “A gente juntou cinco artistas para fazer uma coisa legal, que não tivesse marca-d’água de nenhum de nós. Aí pegamos uma de várias imagens do Rafa e fomos lá numa madrugada.” Mas, no plano artístico, ser ou não ser é questão subjetiva. E o grafite é arte.

A afirmação parece descabida em tempos onde essa vertente da arte urbana aparece na novela das oito e em propagandas da Coca-Cola, mas pintar muros da cidade em público gera um retorno imediato da audiência. “A cada cinco minutos alguém passa e fala alguma coisa, muitos elogios, mas também muitas críticas”, diz Enivo, que nem sempre pede autorização para grafitar e, por isso, já teve seus incidentes com a polícia.

Rafael prefere fazer da periferia sua tela, e pede licença para pintar. Mas reconhece: “A essência do grafite é ser ilegal, é a contravenção mesmo”. A estética é apenas um lado de uma arte com potenciais múltiplos: o protesto social, a ocupação do espaço urbano. Isso, é claro, enfrenta resistência do poder público, com seus policiais e inexoráveis pincéis, como na história em que a prefeitura removeu, por engano, desenhos enormes na própria 23 de Maio. Cada grafite apagado, porém, é o surgimento de uma nova tela para ser preenchida.

Um episódio, que diz muito sobre a desaprovação do público, foi este protagonizado por Enivo e Rafael, quando sua obra amanheceu rabiscada com o inconfundível desenho de um pênis.

“A partir do momento em que termino a arte, ela não é minha: é da rua”, fala Enivo. “Mas aqueles rabiscos foram uma manifestação ridícula de um bando de fascistinha. Aquilo não é pixação; pixação é outra coisa. O prefeito Haddad me ligou para conversar. Disse: ‘Se foi mesmo a intenção, assumam. Vocês têm meu apoio.'” Mas o desenho do homem, com todas as interpretações e opiniões que fomentou, já virava personagem principal de um debate ao qual não pertencia. “O que ficou claro é que estávamos sendo usados em um jogo político bem mais amplo que aquele grafite”, Rafael acrescenta. “Fomos os bodes expiatórios.”

Os artistas sabiam que aquele seria um ponto de muita visibilidade. “Mas o local era fechado com grades, era sujo, abandonado, tinha gente que se abrigava lá.” Quando os desenhos surgiram, de repente, o valor histórico do monumento reapareceu e os Arcos se tornaram intocáveis. Se a vida imita a arte, a obra de Enivo e Rafael trouxe consigo uma profusão de concepções, ideias, de reflexões, de protestos, ideais políticos… O grafite, no entanto, ainda se mostra para quem vem da Zona Leste e pega a alça de acesso à 23. Agora, porém, com os olhos vendados e a boca calada.

 

Polícia! Para quem precisa

 

Por Bruna Larotonda

 

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Aconteceu numa segunda-feira. Era início de madrugada e o tempo estava quente, típico de verão na capital paulista. O céu, iluminado por uma grande e reluzente lua cheia. As ruas já não estavam mais apinhadas de pessoas, apressadas com seus compromissos para lá e para cá. Uma música soava distante, carros e luzes passavam por mim esporadicamente. Uma farmácia aberta, um boteco com uns poucos bêbados virando sua última dose antes de ir para casa. Tudo calmo, tranquilo. A cidade inteira dorme para então despertar e renascer no dia seguinte.

Gosto de sair à noite: é um dos poucos momentos que se consegue ficar sozinho, em paz. Sem trânsito, sem pressa, sem fila. Sem gente estressada que só espera pelo fim de mais um dia. Nesta segunda, minha mãe alertou:

– Não saia hoje, meu filho. Estou com um mau pressentimento. Por favor, fique. Essa cidade está cada dia mais perigosa.

Não entendi o aviso. Tantas vezes que fiz exatamente a mesma coisa, que andei pelas ruas adormecidas dessa cidade que nunca dorme. Por que hoje seria diferente?

Acontece que, como dizem, as mãe sempre têm razão. E a minha, para o meu azar, estava certa também. Eu deveria ter escutado, mas há coisas que simplesmente acreditamos que nunca vai acontecer com a gente. Ouvimos histórias – no cabeleireiro, na fila do supermercado, no ônibus, nos noticiários – um caso do primo do vizinho do amigo de um amigo meu. Um homem morto à queima-roupa, outro ferido, outro humilhado. Mas isso tudo parece algo tão improvável. Pensamos: “que falta de sorte esse garoto teve. Se não estivesse no lugar errado na hora errada… Coitado”. Há também aqueles comentários mais cruéis e egoístas: “Bom, antes ele do que eu…”. A questão é que nunca estamos preparados para o pior.

Tudo começou quando percebi uns caras se aproximando de mim. Eu estava andando normalmente, calmo. Apertei o passo, não queria arriscar. Afinal, a rua já estava completamente deserta e silenciosa. A sombra das árvores na calçada e os sacos de lixo amontoados na sarjeta, com insetos dando as caras vez ou outra, tornavam a cena toda ainda mais sombria. Só queria sair logo dali, encontrar um lugar seguro. De repente, os homens me alcançaram. Tentei ficar calmo, não havia motivos para me fazerem mal. Rapidamente, fui cercado por eles. Fiquei encurralado. Começaram a me dar ordens. Gritaram comigo. Me jogaram no chão. Quando percebi, já estava apanhando. Não demorou cinco minutos, eu estava num carro, sendo levado para algum lugar desconhecido. O que queriam de mim? Por que eu? Invisível, ninguém viu o que aconteceu. Não havia ninguém para ver.

Me avisaram para não reagir. Me avisaram que eles poderiam me machucar. Esses caras são capazes de fazer qualquer coisa para conseguir o que querem. Torturar. Ameaçar. Subjugar. Matar. Me avisaram para ter cuidado, para tentar não chamar atenção. Me avisaram sobre a impotência diante do acontecimento. “Por que o senhor bateu em mim? Por que está fazendo isso? O que eu fiz?” – essas perguntas enchiam a minha cabeça.

Estou com frio. Estou com medo. Perdido. Esquecido. Quem irá me salvar? Para quem posso gritar por socorro? “Misericórdia!”. Peço para pouparem minha vida. O que querem de mim? O que está acontecendo? Não há resposta.

Machucado, amarrado, eles me levaram. “Para onde? Por quê?” – nada. Continuo ouvindo ordens. Eles pensam que podem fazer o que bem entenderem.

– Fique quieto, você é nosso agora. Você sabe muito bem por que está aqui – dizia um.

– Você sabe o que nós queremos. Agora seja bonzinho e coopere, senão… Você já sabe. Não brinque com a nossa paciência – falou o outro.

Silêncio.


Uma em cada cinco mortes em São Paulo foi cometida por policiais em 2014.

No ano passado, a violência policial foi a maior dos últimos 11 anos. Foram ao todo 343 mortes registradas na capital paulista.

Entre 2009 e 2013, a polícia de São Paulo foi considerada a segunda mais letal do Brasil.

Em 2015, 117 pessoas foram mortas pela polícia em todo o estado de São Paulo. Das mortes por militares e civis, 73,5% foram na capital e Grande SP.

Segundo o ouvidor das polícias, Julio Cesar Neves, “95% das mortes deste ano (2015) serão arquivadas e, se algum policial agiu contra a lei, ele não será punido”.

212 policiais militares mataram 110 pessoas e 11 policiais civis mataram sete pessoas em São Paulo nos dois primeiros meses deste ano.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

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