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A questão da memória na era digital

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Os problemas da meia-entrada

 

Por Giovanna Gheller

 

Em palestra no IPq, Bottino explica as relações entre envelhecimento e memória (Cecília Bastos)

Em palestra no IPq, Bottino explica as relações entre envelhecimento e memória (Cecília Bastos)

Especialistas ensinam como nos lembrarmos de eventos e fatos em um tempo em que computadores e smartphones fazem tudo por nós

 

Pode-se contar nos dedos quem, hoje em dia, ainda usa agenda em papel para anotar os números de telefone dos conhecidos. Nos de uma mão, talvez, quem os decore de cabeça. A memória, na atualidade, tem sido muito pouco exigida diante de aparelhos que armazenam informações que antes eram guardadas em nossos cérebros. Como, então, permitir que esta capacidade não atrofie e nos deixe na mão quando o último ponto de bateria se for?

A divisão entre os esquecimentos comuns e os patológicos reside em quando se começa a ter prejuízo no desempenho rotineiro. Esquecer uma coisa ou outra é normal, principalmente hoje em dia quando todos tendem a ser o que se tem chamado de “multitarefa”. Na era de abundantes redes sociais e aparelhos eletrônicos aos montes, estar on-line24 horas por dia é quase um dever. Ao mesmo tempo em que isso possibilita o acesso praticamente instantâneo a tudo que acontece no mundo e encurta distâncias à medida que não mais se precisa deslocar até o local do ocorrido para conhecê-lo, a digitalização da vida também dá mais trabalho, literalmente falando. As jornadas empregatícias semanais acabam se estendendo para um home office não planejado. E-mails de madrugada, ligações durante comemorações familiares, reuniões de fim de semana.

Como explica Fernando Gomes Pinto, neurocirurgião e professor livre-docente de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina, ser multitarefa é, basicamente, ter a atenção dividida, e atenção é justamente um dos componentes essenciais à fixação, junto ao relaxamento. “Pessoas mais estressadas têm mais dificuldade de memorização porque, a longo prazo, os marcadores de adrenalina e cortisol aumentam, e o cortisol em nível mais alto cronicamente pode levar a alterações no hipocampo e na capacidade de fixação da memória”, comenta.

 

Em-palestra-no-IPq-Bottino-explica-as-relações-entre-envelhecimento-e-memória

Em-palestra-no-IPq-Bottino-explica-as-relações-entre-envelhecimento-e-memória

Gomes se indaga sobre o futuro dessa geração: “Será que vamos ser idosos que conseguem falar com várias pessoas ao mesmo tempo? A gente sabe que as pessoas estão, sim, sendo treinadas para isso. Mas os trabalhos mostram que quem geralmente tem esse padrão multitarefa, após um período, tem a memória encurtada, porque, para completar todo o processo de memorização, você precisa essencialmente de atenção focada”. Complementa comentando sobre o surgimento de ferramentas facilitadoras como os buscadores do tipo Google, que fazem com que as pessoas tornem suas pesquisas, e por fim, se tornem muito superficiais. Decorar números de telefones e fazer contas de cabeça também se tornaram atos raros com o advento dos celulares smartphones e das calculadoras. “Não se usa o cérebro em sua plenitude, o que pode causar sua atrofia”, diz. A vantagem é que os recursos tecnológicos permitem que o conhecimento adquirido ao longo do tempo se mantenha independentemente da capacidade biológica humana, mas o lado negativo está em, de fato, se limitar à máquina e solicitar cada vez menos da memória, já que o cérebro é um órgão passível de plasticidade de aprendizagem e treinamento.

 

Nesse caso, como proceder?
Boas memórias contam com a colaboração de fatores genéticos favoráveis, mas estes não só são insuficientes como também não são insubstituíveis. Uma alternativa sugerida por Gomes para a conjuntura atual de digitalização da vida é a fragmentação das atividades – separar os afazeres, escolher um e se dedicar até o fim. A motivação é sempre a chave para se fazer um bom trabalho, mas ela nem sempre existe. Assim, o que pode acontecer é o método de fragmentação funcionar, mas por tempo limitado, de modo que, ao final, haja uma grande ansiedade pelos “cinco minutinhos” determinados para o intervalo e, na espera por eles, o rendimento cair. Aí é hora de mudar de atividade.

Em geral, pensando no cérebro como uma víscera, estudos mostram que há três principais hábitos que podem ser adotados: ter uma boa alimentação, fazer atividades físicas, e dormir pelo menos seis horas e meia por noite. A partir daí também podem ser usadas algumas técnicas para consolidação mnêmica (da memória), como repetição e associação com outras coisas já existentes. Na hora da evocação, vale usar agenda e despertador, praticar jogos como palavras cruzadas e de memória etc.

Tomar café, por exemplo, não ajuda exatamente na memorização, mas atua na atenção, que, como dito, é um dos fatores imprescindíveis para armazenar informações. Um pouco de vinho durante as refeições também mostrou ter efeitos positivos, mas, em contrapartida, álcool em excesso é bastante prejudicial.

 

Para o neurocirurgião Fernando Gomes, motivação é a chave para se exercitar bem o cérebro (Francisco Emolo)

Para o neurocirurgião Fernando Gomes, motivação é a chave para se exercitar bem o cérebro

Quando a idade chega

Chega um momento em nossas vidas em que a pergunta “o que vim fazer aqui mesmo?” fica mais frequente, sendo utilizada, inclusive, como um fator medidor de velhice. Mas isto também é normal. Cássio Machado de Campos Bottino, professor livre-docente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina, explica que é comum que o cérebro vá perdendo um volume de sua massa conforme a idade avança. Isso não necessariamente significa que a memória também está indo embora na mesma proporção, até porque ela está alocada em variadas partes desse órgão que podem não necessariamente ter sido afetadas, mas, quando mais velhos, a tendência é, sim, perder parte da reserva funcional que temos. A habilidade para dividir a atenção diminui no idoso. Criar hábito e rotina e utilizar agendas para marcar informações importantes servem como proteção contra isso.

Estudos acerca do tema que analisam grandes grupos de pessoas sem doenças cerebrais dizem que o ápice do desenvolvimento das funções cognitivas é próximo à faixa dos 20 anos de idade, e alguns divergem quanto ao declínio: uns dizem começar a partir dos 35, outros, a partir dos 50, com aceleração aos 60. Esses mesmos dados mostram que as pessoas entre os 20 e 25 anos têm desempenhos mais próximos em avaliações da atividade cerebral, enquanto nas mais idosas a flutuação é maior. Isso seria resultado de escolhas e opções feitas ao longo da vida e que exigem mais ou menos do cérebro – tipo de ocupação, doenças, prática de atividades físicas, uso de estratégias para melhor desempenho etc.

O que se sabe sobre os idosos é que eles têm mais dificuldade de memorização por terem a velocidade de processamento cognitivo reduzida, já que ela diminui ao longo do tempo. Não conseguem responder de prontidão. Por causa disso, dependem ainda mais de estímulos e motivações para armazenarem informações. Em um teste, por exemplo, se um grupo de idosos obtiver instruções e treinamentos prévios, pode ter desempenho parecido com o de um grupo de jovens.

 

Entendendo os mecanismos

 

Memória é a capacidade de armazenar as coisas que vivenciamos. É uma função cognitiva, o que significa que faz parte do conjunto de processos mentais usados para planejar, interpretar, conhecer coisas e dirigir a vida. Para a maioria dos pesquisadores, é entendida como se fosse um processamento de informações, o que quer dizer que percorre todo um trajeto até ser armazenada em determinada rede. Como explica Cássio Bottino, esse caminho pressupõe alguns passos.

A primeira etapa é a da aquisição, que dura pouco tempo e depende de fatores como atenção e interesse. Pode-se dizer que o estado emocional do momento também é fundamental para definir se o acontecimento será ou não armazenado. Dependendo dessas condições, então, se adquire o primeiro traço mnêmico. A memória secundária normalmente é formada quando o primeiro traço dura mais de 30 segundos. Essa segunda informação, por sua vez, pode vir a se tornar uma memória terciária, que faz parte do conjunto de memórias raramente esquecidas.

A etapa de consolidação ou solidificação da memória geralmente acontece durante o sono. A terceira etapa é a da evocação: o momento em que queremos resgatar a informação memorizada. Nesta, os fatores emocionais também são bastante influentes. O neurocirurgião Fernando Gomes explica que, na antiguidade, já se conhecia uma técnica de evocação utilizada até hoje: a do reaproveitamento de alguma coisa já memorizada para facilitar o armazenamento de outra. Vestibulandos, por exemplo, para se lembrarem da primeira família da tabela periódica, composta por Hidrogênio (H), Lítio (Li), Sódio (Na), Potássio (K), Rubídio (Rb), Césio (Cs) e Frâncio (Fr), associam a sequência de seus símbolos com a frase “Hoje li na cama Robson Crusoé em francês”.

Uma comparação comum é a da memória com os componentes do computador. Fala-se que o disco rígido, memória permanente da máquina, corresponde à nossa memória terciária. “Mas, diferentemente do PC, que possui o disco rígido como uma sede única de armazenamento, o cérebro guarda nossas memórias em várias redes neurais, que variam dependendo do interesse e do estímulo”, explica Gomes.

A memória é considerada de curto prazo ou operacional quando o traço mnêmico não chega até a etapa de se tornar uma memória terciária. Mas essa memória operacional é limitada. Se um texto escrito no computador não for salvo, por exemplo, não há maneira de recuperá-lo. Assim, a memória de curto prazo equivale à memória RAM do computador, que lê os arquivos requeridos, mas não é responsável por seu armazenamento.

Já a memória de longo prazo possui algumas divisões. Pode-se separá-la em explícita (declarativa) e implícita (não-declarativa ou de procedimento). A explícita, relativa às informações transmitidas por meio de palavras, ainda tem subdivisões: a episódica, sobre os eventos datados (saber que jantei com meu primo há dois dias), e a semântica, sobre os conceitos (saber o significado de palavras como “democracia” ou “lealdade”, por exemplo). A implícita difere da outra por não precisar ser verbalizada. É dita a memória para habilidades, como andar de bicicleta e digitar em um teclado de computador. São coisas automáticas, para as quais não é preciso pensar para realizar.

 

 

 

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