comunidade usp

A saúde brasileira tem cura?

  • Facebook facebook
  • Twitter twitter
  • AddThis mais
A saúde brasileira tem cura?

 

Por Ana Luiza Tieghi

Em tempos de manifestações nas ruas pedindo hospitais de qualidade e programas emergenciais recrutando médicos, o setor tem muito trabalho a ser feito

 

“A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Assim começa o artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que completou 25 anos em outubro. O documento foi responsável pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS), órgão que tem a tarefa de fazer valer o que foi promulgado pela Constituição e de fato oferecer serviços de saúde para todos os cidadãos brasileiros.

Porém, é de conhecimento público que os usuários do SUS enfrentam diversas dificuldades para ter acesso a esse direito. Faltam leitos e equipamentos em hospitais, as filas de espera para procedimentos por vezes duram meses, faltam profissionais e infraestrutura em regiões mais afastadas dos grandes centros. Manter um sistema de saúde universal para um país como o Brasil é um desafio à altura da nossa extensão territorial.

O professor Mário Scheffer, da Faculdade de Medicina, conduziu recentemente o estudo Demografia Médica no Brasil e encontrou desigualdades alarmantes entre as regiões do País. “Os médicos estão mais concentrados nos Estados do Sul e Sudeste e nas capitais. As diferenças são enormes: o morador de um Estado do Sul e Sudeste tem à sua disposição duas vezes mais médicos do que quem mora nas outras regiões”, afirma. Os moradores das capitais também têm acesso ao dobro de médicos do que aqueles que moram no interior dos Estados. Assim, o habitante de uma capital do Sul e Sudeste tem quatro vezes mais médicos à sua disposição do que o morador de uma cidade do interior do Nordeste, por exemplo.

Aparentemente, faltam profissionais para atender toda a população nacional. Mas talvez esse não seja o principal problema. O estudo de Scheffer apontou que no País existem 400 mil médicos, porém, eles estão mal distribuídos geograficamente e por formação. “No Brasil nós temos taxas de concentração de médicos muito próximas de países africanos e também taxas superiores aos países mais desenvolvidos”, explica.Aqui também se investe muito na formação de médicos especialistas, mas, segundo Scheffer, os profissionais generalistas seriam capazes de atender a mais de 85% dos problemas de saúde da população. “Nós temos hoje uma formação que não está coordenada com as necessidades reais do sistema de saúde”, afirma. Essa formação é voltada para o mercado privado e acaba afastando os médicos das regiões onde falta a atenção básica, o que provoca a continuidade das desigualdades regionais que já existem.

A gestão também é importante

Há-muito-desperdício-de-recursos-por-má-organização”-afirma-Paulo-Roberto-Feldmann-professor-da-FEA-sobre-a-administração-hospitalarfoto

Há-muito-desperdício-de-recursos-por-má-organização”-afirma-Paulo-Roberto-Feldmann-professor-da-FEA-sobre-a-administração-hospitalarfoto

Administrar um sistema de saúde que atende cerca de 200 milhões de pessoas não é tarefa fácil. “A situação dos nossos hospitais, do ponto de vista da administração, é uma tragédia”, afirma Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), que trabalhou em um projeto de reestruturação administrativa do Hospital das Clínicas, no momento sendo analisado pela Assembleia Legislativa de São Paulo. Ele aponta os problemas de gestão como as principais causas da ineficiência do sistema de saúde. “Há muito desperdício de recursos por má organização, as pessoas não estão preparadas e capacitadas para gerirem instituições de saúde”, critica.

Segundo Feldmann, hospitais são como empresas e devem ser administrados da mesma forma. São poucas as instituições de saúde que possuem sistemas de gestão integrados via computador, o que já poderia maximizar a distribuição de recursos financeiros e de pessoal. “Deveria ter funcionários mais bem treinados e que fossem medidos por performance, o que não acontece no Brasil”, aponta. O professor da FEA acredita que poderiam ser implantadas medidas de avaliação de desempenho dos funcionários de hospitais, chamadas de “tempos e métodos”. Cada pessoa tem o tempo estimado que a sua atividade deve demorar, e ao final de um período ela é avaliada por ter atingido ou não a meta esperada.

O-Hospital-Universitário-é-uma-instituição-pública-de-saúde-e-atende-pelo-SUS-sistema-que-possui-mais-de-200-milhões-de-usuários

O-Hospital-Universitário-é-uma-instituição-pública-de-saúde-e-atende-pelo-SUS-sistema-que-possui-mais-de-200-milhões-de-usuários

Feldmann acredita ainda que essa falta de controle na distribuição de tempo dos profissionais é a causa do encarecimento do sistema de saúde no Brasil. Ele visitou hospitais em Israel em companhia do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e mais uma equipe de médicos. “Lá são quatro funcionários por leito hospitalar. Um hospital com mil leitos tem quatro mil funcionários, enquanto que no Brasil a média é de nove ou dez mil.” Isso significa que aqui são necessários aproximadamente dez funcionários por leito, enquanto em outros países trabalha-se com apenas quatro. E o sistema funciona. “Quem paga essa diferença somos nós, o público. O convênio aqui é muito alto porque tem que pagar o hospital que é ineficiente”, conclui.

A falta de concorrência entre os hospitais também é vista pelo professor como um entrave à melhora do atendimento. “A concorrência, em qualquer setor da economia, obriga as empresas a serem mais produtivas, inovadoras e com custos mais baixos”, explica. Segundo o professor, mais informações sobre a qualidade do atendimento dos hospitais poderiam ser divulgadas para o público, de forma a criar uma competitividade para mostrar eficiência. “Em outros países, as instituições são obrigadas a divulgar quantas pessoas morrem em determinado hospital por ano. No Brasil isso é uma informação secreta, se você falar isso, os hospitais derrubam o ministro da saúde.” A falta de informações sobre a qualidade dos serviços hospitalares impede que a população tenha espaço para reclamar e exigir melhorias.

O problema crônico do financiamento

Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina, “o maior problema da saúde pública hoje no Brasil é o subfinanciamento”

Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina, “o maior problema da saúde pública hoje no Brasil é o subfinanciamento”

Scheffer acredita que “o maior problema da saúde pública hoje no Brasil é o subfinanciamento”. Faltam recursos, em números absolutos, e também segurança sobre as fontes do financiamento. A Constituição de 1988 apontou de onde o dinheiro para sustentar o SUS deveria vir, mas mudanças foram feitas ao longo desses 25 anos. “A Constituição definiu 30% dos recursos da seguridade social para saúde e imediatamente isso foi perdido. Se o Estado mantivesse em 2013 o mesmo percentual proposto em 88, neste ano o SUS federal receberia R$ 195 bilhões. Mas o orçamento foi de R$ 84 bilhões”, aponta o professor da Faculdade de Medicina.

Em entrevista ao Portal da USP, o professor da Faculdade de Saúde Pública Áquila Mendes criticou uma emenda constitucional aprovada em 1994 que promove a desvinculação das receitas da União – também conhecida pela sigla DRU. Ela permitiu que parte dos recursos que seriam destinados à saúde tivesse outro fim. “20% das receitas da seguridade social foram deslocadas para o caixa geral da União, para pagar os juros da dívida”, apontou. A emenda continua valendo até hoje e é alvo de críticas pelos defensores de um melhor financiamento do SUS.

“Em 1993 perdeu-se outra fonte de recursos, a contribuição da folha de pagamento, que deixou de ir para a saúde. Depois, em 1996, a CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira) foi criada e desvirtuada”, explica Scheffer.

A Emenda Constitucional 29, regulamentada no final de 2011, define o que são ações de saúde e quais os percentuais mínimos da receita que Estados e municípios precisam gastar com o setor. Foi uma medida importante por evitar que gastos do setor de transportes ou educação, por exemplo, fossem descontados do recurso destinado à saúde. “Antes dessa definição, além de serem escassos, os recursos eram constantemente desviados para outros fins. Aplicava-se recursos na merenda escolar, no asfaltamento da rua que vai para o posto de saúde”, conta Scheffer.

Feldmann trabalhou em um projeto de reestruturação administrativa do Hospital das Clínicas e acredita que as instituições públicas de saúde podem ser mais eficientes

Feldmann trabalhou em um projeto de reestruturação administrativa do Hospital das Clínicas e acredita que as instituições públicas de saúde podem ser mais eficientes

Já os percentuais mínimos foram fixados em 12% para os Estados e 15% para os municípios. O SUS é divido pelas esferas federal, estadual e municipal e cada esfera arca com os custos e a organização das atividades das quais é responsável. Porém, como os gastos do governo federal estão aquém das expectativas geradas pelo texto constitucional, Estados e principalmente municípios – que possuem uma renda muito mais limitada do que a União – acabam arcando com boa parte dos custos do sistema de saúde.

Segundo Áquila Mendes, “com a aprovação da Emenda 29, nós conseguimos sair de um gasto com a saúde pública que representava 2,89% do PIB, no ano 2000, para 3,8% em 2011”. Essa porcentagem, apesar de ter crescido, ainda está bem abaixo daquela que outros países com sistemas universais de saúde costumam gastar, algo em torno de 7% do PIB. “O Brasil teria que dobrar o investimento”, afirmou o professor da FSP.

Público x Privado

O SUS deveria ser responsável pelo atendimento médico de toda a população brasileira. Porém, hoje mais de 50 milhões de pessoas possuem planos de saúde privados. E esse é um mercado que vem crescendo à taxa de 10% ao ano. “O mercado de planos de saúde tem o seu lugar, mas ele não pode ser como é atualmente”, defende Mário Scheffer. O professor critica a falta de regulação da indústria dos seguros e afirma que até mesmo a Agência Nacional de Saúde (ANS), que deveria exercer o papel de reguladora, está “totalmente contaminada pelo mercado”, o que permite que as seguradoras vendam planos baratos, mas com cobertura muito restrita e baixa qualidade.

Se o usuário da saúde privada precisa de um tratamento que não é oferecido por sua seguradora, ele vai recorrer ao SUS. Assim, o sistema público precisa arcar também com os procedimentos daqueles que possuem planos particulares. Os hospitais públicos deveriam ser ressarcidos pelos planos de saúde todas as vezes que os segurados realizassem procedimentos neles, mas Scheffer afirma que isso não costuma ocorrer na prática.

O Brasil possui regiões com alta concentração de médicos e outras em que faltam profissionais, melhorar a distribuição é uma das soluções para o problema da saúde

O Brasil possui regiões com alta concentração de médicos e outras em que faltam profissionais, melhorar a distribuição é uma das soluções para o problema da saúde

O mercado de planos de saúde se beneficia de subsídios fiscais, de forma direta e indireta. O abatimento do imposto de pessoas físicas e jurídicas do gasto privado com os planos é uma fonte a menos de recurso para a saúde pública. Se as seguradoras não reembolsam o SUS por gastos que este foi obrigado a fazer por elas, a conta fica ainda mais difícil para o lado da saúde pública. “O Estado tem que arcar com toda essa evasão fiscal. Em 2011, por exemplo, a isenção chegou a R$ 19 bilhões. Isso inibe o financiamento público”, afirmou Mendes.

Investir em um sistema de saúde baseado em planos privados já foi uma ideia no Brasil, mas a Constituição de 1988 a descartou. Ao encarar a saúde como um direito, não é possível tratá-la apenas como mercadoria. “Os EUA, por exemplo, investiram na indústria dos planos de saúde e esse sistema se mostrou o mais caro do mundo, além de ser desigual”, exemplifica o professor da Faculdade de Medicina. “Lembrando que eles destinam dez vezes mais recursos per capita do que o Brasil. Nós não teremos esses recursos”, compara.

Também houve avanços

Apesar de todos os seus inúmeros problemas, o SUS contribuiu de forma decisiva para melhorar os indicadores de saúde no Brasil. Antes de 1988, o serviço de atendimento médico era realizado pelo Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social,o Inamps. Porém, somente os cidadãos que tivessem carteira assinada poderiam receber o atendimento, excluindo aqueles que estavam desempregados.

A reforma sanitária foi o movimento responsável por fazer crescer a ideia de que a saúde deveria ser provida pelo Estado para todos os brasileiros, sem distinções, e encarada como um direito básico. Ainda hoje essa corrente de pensamento continua tentando fazer com que as políticas públicas invistam mais no sistema de saúde. “Faltam decisões políticas que de fato priorizem a aplicação do sistema de saúde universal e a sua sustentabilidade financeira. Porque desde que foi criado, o SUS não recebe recursos à altura da sua obrigação constitucional”, afirma Scheffer.

O sistema de saúde atual é desorganizado e ineficiente, mas já promoveu grandes avanços: foi responsável por acabar com a transmissão de doenças como o mal de Chagas vetorial, realiza campanhas de vacinação que possuem um longo alcance, oferece tratamento gratuito para cerca de 300 mil pacientes com Aids, além de realizar transplantes, sessões de quimioterapia e outros tratamentos. Melhorar a quantidade e a distribuição dos recursos financeiros e criar sistemas de gestão mais eficientes, segundo os professores consultados, são as melhores opções para que o sistema alcance todo o seu potencial.

 Os números do SUS

O sistema de saúde de um país com mais de 200 milhões de habitantes possui números astronômicos:

- O SUS atende mais de 200 milhões de pessoas, e 80% delas (152 milhões) são suas usuárias exclusivas.

- São mais de 6 mil hospitais, 45 mil Unidades de Atenção Primária e 30,3 mil Equipes de Saúde da Família.

- Todos os anos são realizados 2,8 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 19 mil transplantes e 236 mil cirurgias cardíacas.

- São 9,7 milhões de procedimentos de quimio e radioterapia e 11 milhões de internações ao ano.

Deixe um Comentário

Fique de Olho

Enquetes

As questões nas reuniões do Conselho Municipal de Política Urbana envolvem, indiretamente, transporte e mobilidade. Em sua opinião, qual item seria prioridade para melhorar o transporte público?

Carregando ... Carregando ...

Dicas de Leitura

A história do jornalismo brasileiro

O livro aborda a imprensa no período colonial, estende-se pela época da independência e termina com a ascensão de D. Pedro II ao poder, na década de 1840
Clique e confira


Video

A evolução do parto

O programa “Linha do Tempo”, da TV USP de...

Áudio

Energia eólica e o meio ambiente

O programa de rádio “Ambiente é o Meio” foi...

/Expediente

/Arquivo

/Edições Anteriores