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Deslizes éticos acontecem desde criança

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A saúde brasileira tem cura?

 

Por Giovanna Gheller

 Especialistas explicam que nossa conduta é formada desde a infância, e demonstram como, quando mais velhos, nossas atitudes podem afetar o ambiente em que trabalhamos

 

 

As influências que se recebe desde a infância são fundamentais para o encaminhamento da conduta de cada um

As influências que se recebe desde a infância são fundamentais para o encaminhamento da conduta de cada um

Por mais ingênuas que pareçam as crianças, já nessa fase da vida é que o comportamento futuro está sendo formado. Aquela trapaça na prova de matemática da segunda série, quando não debatida, pode ser responsável por formar o indivíduo que leva crédito com as ideias alheias no serviço. Como são variáveis as influências sociais, culturais e políticas meio as quais crescem as pessoas, também diversificadas podem ser suas concepções acerca do que é ético ou não. Para tentar regulamentar essa questão nas relações interpessoais, relativas ou não a trabalho, é que existem órgãos como a Comissão de Ética na Universidade de São Paulo.

O tema de estudo da tese de doutorado de Andréa Cristina Felix Dias, defendida no Instituto de Psicologia em agosto deste ano, foi justamente os territórios da personalidade ética – ações morais, valores e virtudes – na infância. Psicóloga por formação e professora polivalente do ensino fundamental, em sua tese trabalhou com crianças e adolescentes na faixa dos 9, 12 e 16 anos, que deveriam responder, via questionário, quais eram as características que mais admiravam nas pessoas, informação que seria posteriormente cruzada com respostas de seus orientadores sobre seus desempenhos em classe e em grupo, para então serem obtidos resultados sobre o “pensar” e o “agir” de cada um.
Andréa comenta que, na Psicologia, é muito trabalhado o que determinada pessoa pensa de um tema, mas “é difícil fazer um estudo sobre como ela age de verdade”, e, como professora, diz sempre ter notado uma lacuna entre estes dois campos. As respostas que apareceram com mais vigor nos resultados dos alunos foram relativas às amizades; admiram os amigos. Aos 16 anos, as respostas ficam mais sofisticadas – eles admiram pessoas sinceras, companheiras, bondosas, autênticas e honestas. Um fato inesperado para Andréa foi que somente na faixa dos 16 anos apareceram reflexos de valores morais, o que imaginava, ainda que em proporções menores e formulações mais simples, já nos pequenos. Nesta idade, também, foi quando houve maior coerência entre pensamento e ação, o que mostra que a convergência entre os dois é algo que vai sendo moldado, por isso é importante, na escola e fora dela, não ficar só no discurso, mas sim lidar com prática de verdade.

Ana Cristina Limongi-França, psicóloga e professora da FEA, acredita que os conflitos no trabalho são bem mais frequentes do que se imagina

Ana Cristina Limongi-França, psicóloga e professora da FEA, acredita que os conflitos no trabalho são bem mais frequentes do que se imagina

Para a educadora, os vários aspectos que constroem a conduta ética do indivíduo giram em torno dos desenvolvimentos intelectual e afetivo, do quais se dá o desenvolvimento moral. “O problema é que faltam pautas culturais. A cultura não tem valorizado essas ações boas e consideradas éticas, o que faz com que as crianças percam um dos lugares no qual se espelhar.” Mas Andréa complementa dizendo que, ao mesmo tempo, também não aparecem, na fala dos participantes da pesquisa, aspectos que a cultura de massa valoriza, como a beleza física, a inteligência e o endinheiramento. “É legal porque não é tudo que é dito e propagado pelos meios de difusão cultural que é incorporado. Elas têm um certo filtro.”

Uma das principais problemáticas ocorridas na escola, que talvez possa ocorrer também no círculo familiar, é a falta de elogios e cumprimentos pelo que se fez de certo. “A escola, no caso, parece que está sempre apagando incêndios. Se acontece um problema, a escola conversa, discute, vê qual é a melhor forma de agir… enfim, corrige erros em vez de apontar os aspectos positivos.” Para um crescimento ético, Andréa acredita que seja importante dizer aquilo que existe de bom no ser humano, ainda mais em decorrência da conjuntura atual do mundo, em que violência, drogas, individualismo, competitividade e ganância convivem com seres puros como crianças. “Estamos lutando contra a maré. A gente sabe que não está tudo caminhando para as crianças serem éticas, está tudo caminhando para elas não serem. Para serem individualistas, competitivas, para não pensarem no bem do outro.” Além disso, cada vez mais as famílias tendem a ser menores e os pais, a passar menos tempo com os filhos, o que acaba delegando ainda mais o papel da educação ao ambiente escolar.

Os pais, também, estão cercados de dúvidas sobre o que é mais ou menos adequado, e acabam passando essa insegurança aos filhos. “Existem pais que pensam ‘ele me deu um tapinha, mas é tão pequenininho, não entende’. Entende, sim. Tem que tentar fazer entender que aquilo não é legal, porque aquele tapinha daquele bebê de um ano, quando ele tiver três, vai machucar, quando tiver cinco, não vai mais ser possível dizer não.” Assim, Andréa julga importante que limites e orientações sejam estabelecidos desde cedo, mesmo que não haja compreensão imediata, porque uma hora ou outra a informação fará sentido.
De maneira geral, talvez o mais adequado seja abrir a relação pais-filhos ou escola-crianças para resoluções conjuntas, o que constrói a autonomia dos pequenos e dá noção de responsabilidade e de que seus atos influenciam o todo. “É legal que saibam que as atitudes que eles têm afetam o coletivo”, diz a educadora. Para punir atitudes erradas, é sempre bom buscar soluções reparadoras: se a criança estragou alguma coisa do colega, ela precisa consertar, se ela interrompeu a aula, não pode participar dela, tem que conseguir se comportar bem. Sempre trazer uma punição que esteja diretamente ligada à atitude. A educadora acredita que as pessoas possuam plasticidade de mudança, de modo que possam incorporar novos pensamentos e valores, mas, talvez, quanto mais tempo passar, mais rígida se torne essa interpenetração de ideias.

Quando não é mais “brincadeira de criança”

 

Para a presidente da Comissão de Ética da USP, Sueli Dallari, indivíduos que cometem ações antiéticas devem ter o fato reportado, mas não precisam ser execrados por isto

Para a presidente da Comissão de Ética da USP, Sueli Dallari, indivíduos que cometem ações antiéticas devem ter o fato reportado, mas não precisam ser execrados por isto

Para isso é importante chegar ao mundo adulto bem orientado e estruturado por valores socioculturais. Diariamente, diversas são as questões que colocam um dilema ético no meio do caminho trilhado. E, para a psicóloga e professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade Ana Cristina Limongi-França, os conflitos que ferem conceitos de valores pré-estipulados são mais presentes do que se vê.
Sabendo que há não só decisões, mas também imposições – inclusive sobre vida pessoal – que são dadas de cima para baixo, é interessante ressaltar que, a princípio, ninguém, em nenhum tipo de contrato de trabalho, “deve se submeter a práticas que estejam contra seus princípios e valores, ou a qualquer atividade suspeita sobre o ponto de vista da contravenção ou do crime”, como alega Ana Cristina. Mas, na prática, o que acontece é que a subordinação cria uma “nuvem de omissão da responsabilidade” quando há determinação superior. “Nestes casos, a informação e o apoio do sindicato, da associação de classe e de advogados são fundamentais. O trabalho responsável e corresponsável é um dos grandes pilares da Ética no Trabalho, embora haja dentro deste processo dilemas históricos da exploração capital-trabalho.”

Existem empresas que possuem regimentos internos, políticas públicas e pressão internacional em vários sentidos, mas a prática de conduta ética continua, de fato, não sendo tão comum. Deslizes éticos no trabalho se assemelham aos que ocorrem na sociedade em geral. “Vão de pequenas omissões de atenção e proteção à vida a práticas criminosas e abusivas relacionadas à violência física e moral, à sabotagem, covardia, mentira e outros comportamentos antissociais”, diz a professora. A diferença, como complementa, é que, no ambiente de trabalho, uma vez que também podem existir fatos como assédio moral, sobrecarga de serviço, falta de educação ao tratar com os colegas em qualquer nível etc., a ética tem um impacto mais complexo, porque fatores como estes podem influenciar diretamente nas oportunidades de carreira e de parcerias, no reconhecimento profissional e nas relações de confiança, por exemplo.

No meio acadêmico, para a professora, a questão do plágio é hoje um dos maiores desafios no exercício ético. Ana Cristina explica que o comportamento antiético está presente em todos os níveis, “desde pequenos incidentes em trabalhos de classe até o rastreamento de cópias e transcrições realizado de forma incorreta ou incompleta, feito ora por descaso, ora para ‘tirar vantagem’, e outras vezes por considerar que um texto plagiado não tem propriedade intelectual prévia. Algumas vezes, o próprio descuido do pesquisador em não publicar ou patentear suas ideias cria situações para apropriações indevidas de suas concepções e produções”. Já se lida com a importância e a necessidade de se eliminar esses problemas, mas as políticas e procedimentos ainda se concentram em casos emblemáticos.

 

A Comissão de Ética

Para cuidar desses contratempos na USP, no ano de 2001, após aprovado o Código de Ética, foi criada a Comissão de Ética da Universidade de São Paulo, formada por intermédio do Conselho Universitário. A comissão tem por finalidade lidar com os acontecimentos em que, dentro do ambiente da Universidade e por conta de trabalhos nela realizados, um indivíduo ou um grupo se sentem moralmente prejudicados pela ação de terceiros.

Na presidência da comissão está Sueli Gandolfi Dallari, advogada e professora da Faculdade de Saúde Pública, eleita para o cargo pelos próprios membros constituintes. A professora explica que a comissão foi criada num momento em que começava uma discussão muito significativa sobre a questão da ética na pesquisa. “Todos estavam preocupados com o uso dos seres humanos em pesquisa, no sentido do ser humano enquanto um sujeito dela.” Ao mesmo tempo, naquele momento já se tinha alguma clareza sobre os problemas presentes em comunidades indígenas, que poderiam ser influenciadas e até mesmo prejudicadas pelos projetos de pesquisa.  Somado a isso, a USP quis fazer um Código de Ética que prezasse o relacionamento das pessoas dentro da Universidade.

Segundo a resolução 4.871, de 22/10/2001, que aprovou o Código de Ética, a comissão tem por missão: conhecer as consultas, denúncias e representações formuladas contra membros da Universidade, por infringência às normas do código e postulados éticos da instituição; apurar a ocorrência das infrações; encaminhar suas conclusões às autoridades competentes para as providências cabíveis; e criar um acervo de decisões do qual se extraiam princípios norteados de atividades da Universidade, complementares ao código. Passados mais de dez anos da instauração da comissão, a docente acredita que sua infraestrutura jurídica de regimento interno ainda é algo a ser mais bem arquitetado, o que também facilitaria para que os casos chegassem devidamente apurados à comissão, já que ela não tem poder de sindicância. Considera importante que seja elaborado um banco de dados com os casos trabalhados, não para que se crie um molde de como agir em cada situação, diferentemente de como ocorre no Direito, que possui normas preestabelecidas, mas sim para se ter um espelho em que se basear. “Quando nós falamos de ética, estamos falando de um consenso sobre o que é o melhor comportamento. Necessariamente terei que discutir e debater para saber qual é esse melhor comportamento. Com um banco de dados de fácil acesso a todos, até mesmo a familiarização dos assuntos e a compreensão da sociedade poderiam ser mais difundidas.”

Quem reporta os ocorridos à Comissão de Ética são os próprios indivíduos que se sentiram ofendidos – alguém que foi maltratado em uma reunião departamental, um pesquisador que não recebeu os créditos que deveria em determinado trabalho, participantes de um concurso fraudado etc. A matéria de trabalho da comissão são justamente as relações de sociabilidade, que, na opinião de Sueli, estão cada vez mais complicadas no ambiente competitivo em que se vive. Muitas vezes, como conta, as questões até já se resolveram judicialmente, mas o posicionamento da comissão perante o caso ainda é muito procurado.

Assim, percebe-se que o conflito ético e moral está bastante relacionado ao prejuízo pessoal que pode ocorrer ao injustiçado, talvez mais do que à questão financeira. Mesmo que já devidamente indenizada, a vítima sente necessidade de que consintam com sua posição, e que, além disso, o outro seja efetivamente punido. Mas nem por isso a relação entre as partes está irrevogavelmente rompida: dependendo dos laços anteriores ao fato, de como ele realmente ocorreu, e do tempo que passou, a relação conflituosa pode até mesmo amadurecer e crescer.

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