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Os bastidores do jogo compulsivo

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Vida entre o asfalto e o concreto

 

Por Raphael Martins

Apesar das dificuldades, pessoas dependentes de jogo têm alternativas de tratamento com boas chances de recuperação
Libertar-se de um vício nunca é fácil. Considerando que o vício em jogos de azar vem, geralmente, acompanhado de outro correlato, a situação fica ainda mais complicada. Pouco mais de 73% dos viciados em jogos são também dependentes de álcool, segundo pesquisa do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (PRO-Amjo) do Instituto de Psiquiatria. Além desses, cerca de 60% apresenta dependência de nicotina e quase 40% algum transtorno relacionado às drogas.

Entretanto, como qualquer outra dependência, o jogo patológico tem controle. A recuperação é condicionada por vários fatores, como a pessoa perceber que precisa de ajuda, ter apoio familiar e vontade de se recuperar. “É importante dizer que, dos pacientes que procuram um profissional, 70% efetivamente começam o tratamento. Desses que começam, 70% concluem o tratamento e melhoram. Voltam ao nível de comportamento normal”, conta Hermano Tavares, professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FMUSP) e médico do Instituto de Psiquiatria (IPq).

Sueli é professora do curso de Psicologia das Relações Humanas do IP

Os casos de jogadores compulsivos são bastante característicos. Tavares conta que um caso patológico deve atender a três pilares característicos, que, juntos, fecham o diagnóstico: “O primeiro pilar é a perda de controle sobre a atividade de aposta. Ele diz que vai apostar um pouco e acaba investindo muito mais tempo e dinheiro do que se prometeu. Diz que vai ali por uma hora e acaba ficando a noite toda”.

Tavares destaca outro sinal, ainda do primeiro pilar: as tentativas frustradas de ficar sem jogar. “Ele se propõe a ficar uma semana, ou um mês, afastado. Seja lá qual for a restrição, a pessoa sempre quebra a promessa e retorna ao jogo.”

Assim como o álcool, que, se consumido diariamente, provoca uma adaptação do cérebro a essa exposição recorrente, o jogo funciona da mesma forma. Este é o segundo pilar do diagnóstico.

No caso do jogo, os efeitos dessa exposição fazem com que o prazer de apostar vá diminuindo. Para compensar, o jogador vai aumentando o risco, para ter a mesma emoção que ele tinha no começo. Tudo isso é muito comparável ao grupo álcool/drogas, em que as quantidades vão aumentando em busca do efeito do período inicial de consumo. Assim se estrutura a dependência.

O terceiro pilar é o sofrimento psicossocial. “Quando o jogador exagera, acaba acumulando uma série de prejuízos: éticos, financeiros, morais, nos relacionamentos pessoais, no trabalho. E mesmo com todos esses prejuízos, ele continua jogando”, diz o médico.

Tavares é fundador do PRO-Amjo que auxilia na recuperação de jogadores

O que é importante levar em conta é que o comportamento vicioso é, geralmente, resultado de um retrospecto que a pessoa possa ter numa época de formação pessoal. Para Sueli Damergian, professora do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia (IP), existem modelos de identificação que influenciam diretamente nesse processo: “Isso é vital na construção da nossa personalidade e da nossa identidade. O bebê, evidentemente, não vem para o mundo vazio, ele traz características dele. Agora, o meio no qual ele vive vai colocar modelos diante dele, ou seja, formas de ser, de se comportar, de pensar”.

“Esses modelos podem ser construtivos (saudáveis, modelos amorosos), que ofereçam padrões éticos e mais humanos para o desenvolvimento da personalidade. Mas eles podem também ser modelos destrutivos. Sendo uma família desestruturada, com comportamentos viciosos nas figuras parentais, isto vai influenciar negativamente na construção dessa personalidade”, conclui a psicóloga.

Sueli explica que os seres humanos são uma interação daquilo que trazem ao nascer e do que vivenciam no meio. Relações com familiares e amigos são fundamentais na formação do caráter. Acontece que a criança ainda é muito frágil e influenciável por aquilo que lhe é dado como modelo, tornando-a mais vulnerável às influências negativas: “Se a criança já traz uma bagagem deficitária e é colocada em um meio em que a ética, os valores e o amor não existem, a facilidade com que ela pode se encaminhar para um rumo destrutivo é muito grande”.

Claro que nem todos os jogadores são necessariamente casos patológicos. Tavares conta que é comum a divisão entre abstêmios, pessoas que não jogam; o jogador social, que joga, mas não tem qualquer problema com isso; o jogador-problema, que apresenta parcialmente um dos três pilares; e o jogador patológico.

A linha que separa o jogador-problema do patológico é bastante tênue e perigosa. Esse estado já sugere uma atenção especial, para que não se torne um caso clínico. “Se você acha que tem o jogador-problema na família, caso ele seja suscetível, o primeiro passo é sentar e conversar. O problema é que, muitas vezes, as pessoas são refratárias a qualquer abordagem”, diz o médico.

“Deve-se conversar à medida que essa pessoa esteja receptível a um diálogo. Procurar mostrar, com dados objetivos, o que ela ganhou e o que ela perdeu até ali. Depois deixar clara a necessidade de procurar uma ajuda especializada”, acrescenta Sueli.

Apesar do pensamento mais comum de uma mente viciada ser a negação do caso, passado o diálogo, o próximo passo é provocar a percepção desse indivíduo, para que ele note que tem um problema. Tavares comenta: “Tem que parar de fazer coisas que não funcionam. O que não funciona? Ameaçar, apontar defeitos, suplicar, ser complacente (ajudar com dívidas)”.

Para o psiquiatra, mesmo que tentando ajudar, não é recomendado se envolver quando a pessoa joga. É necessário deixar que o sujeito lide com as consequências, dando o suporte em outros momentos: “Caso ele queira parar de jogar, se livrar do problema, aí sim, deve-se estar lá para apoiá-lo. Essa é a hora-chave. Tornar qualquer atividade alternativa ao jogo mais atrativa do que jogar”.

Sueli ressalta a importância do apoio das pessoas próximas destacando o  sentimento quando o indivíduo percebe todo o prejuízo que o vício causou: “Ele sente uma angústia de quem não consegue se libertar do problema sozinho e, portanto, vai precisar de ajuda. É um sentimento de decepção consigo mesmo, de inferioridade, por estar prejudicando a ele e às outras pessoas. Uma culpa e um desejo de acobertar essa culpa”.

Ao perceber toda a situação em que está envolvida, a pessoa tende a pensar nos prejuízos, a perceber que o jogo está prejudicando sua vida de várias formas. Neste momento, Tavares afirma ser a hora de ver um profissional.

As máquinas caça-níqueis criam grande dependência por darem resultados rápidos e incentivar outra jogada

Ele conta que os desafios do tratamento são condições psiquiátricas associadas (75% desses pacientes têm, além do jogo, alguma outra condição, seja depressão ou ansiedade), a falta de motivação para o tratamento, pois geralmente têm vergonha dessa situação ou são orgulhosos, achando que devem resolver tudo sozinhos, a falta de informação da família, que por muitas vezes não acredita que o sujeito tenha um problema, e a fissura enquanto se trata, o que aumenta muito o índice de recaída.

Distúrbios psicológicos ou psiquiátricos têm uma gama muito variada de tratamentos. É o que ressalta a psicóloga: “Não há uma receita. Os diversos grupos de ajuda têm seus diferentes métodos e abordagens de tratamento, buscando uma espécie de conforto psicológico que estimule a libertação da pessoa de forma mais eficaz. Devem-se valorizar as características e atitudes positivas da pessoa, para que ela se segure nesses pilares”.

Para Tavares, os pontos fundamentais para um tratamento funcional são a determinação de voltar a ter uma vida normal e o apoio das pessoas próximas. Ele acrescenta ainda que o Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (PRO-Amjo) tem vagas abertas para tratamento e que quaisquer interessados podem ligar para o telefone (11) 2307-7805 e marcar uma avaliação, para iniciar o tratamento o mais brevemente possível.

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