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Vida entre o asfalto e o concreto

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Vida entre o asfalto e o concreto

 

Isabela Morais

Desigualdade dos grandes centros urbanos impõe desafios à saúde coletiva e individual. Por quais caminhos é possível superá-los?

 

Da periferia ao centro, poucos escapam. O trânsito consome as horas do dia – já curto pelo acúmulo de tarefas. O lazer é restrito, pois faltam áreas verdes e a cultura tem custo elevado. Ônibus lotado, metrô insuficiente e trens lentos ou quebrados. O aluguel é caro e só muito trabalho pode pagá-lo. A cena, então, desenha-se perfeita para que estresse, ansiedade e amargura se instalem, enquanto a qualidade de vida escorre e vai embora com as águas que alagam as vias.

“Teremos competência para fazer cartilhas de qualidade de vida ou vamos sempre, como é de nossa natureza, nos valer de truques de curto prazo de validade?”, questiona Elko Perissinotti, vice-diretor do Hospital-Dia do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas (HC). Assim como nada nas grandes cidades parece ter via de mão única, as soluções podem estar na soma de políticas públicas com mudanças de estilo de vida.

 

Problemas urbanos

 

Para Flávio Villaça, Professor Emérito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), são três os principais problemas das grandes cidades: habitação, transporte e saneamento. “Em São Paulo, mais de 50% da população mora em situação irregular. Desse total, 20% vivem em favelas, um problema habitacional gravíssimo”, alerta.

No metrô de São Paulo, o número de passageiros aumenta, mas os investimentos diminuem

Com relação à mobilidade, o professor aponta a diferença entre investimentos em transporte público e privado. O metrô paulistano, em operação desde setembro de 1974, avança a menos de dois quilômetros por ano, o que, segundo Villaça, é irrisório. “Para o transporte privado, o gasto é muito grande. Não há cidade no mundo, embora com topografia semelhante, como San Francisco, nos EUA, em que haja tantas obras que privilegiam o carro”, diz.

De acordo com dados divulgados pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, nos últimos cinco anos, o número de passageiros cresceu 40%. Porém, entre 2010 e 2011, os balanços oficiais da instituição mostram diminuição nos investimentos: queda de 19,6% na rede atual e de 39% nos projetos de expansão.

A questão do saneamento também inclui problemas ambientais e falta de áreas verdes. Em São Paulo, menos de 40% do território possui vegetação, de acordo com a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, e há seis m² de área verde por habitante. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma área de 12 m² por habitante para que a população respire um ar de boa qualidade.

Elko Perissinotti é coordenador do Grupo de Resiliência do IPq

Em cidades médias do Estado, como Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, Bauru, São José dos Campos e Sorocaba, o padrão de vida é melhor em comparação à capital. Entretanto, para Villaça, esses municípios simbolizam o descaso. Isso porque, nessas localidades, a questão do acesso à terra não deveria ser tão grave como é. “Por isso, elas têm problemas de habitação que não deveriam ter, como a existência de favelas”, afirma.

 

Políticas públicas

 

Em meio a tantos problemas, a qualidade de vida encontra cenário propício para se deteriorar. Um estudo divulgado pelo IPq revelou a associação entre as megacidades e a incidência de transtornos psiquiátricos. Na região metropolitana de São Paulo, 30% dos entrevistados apresentaram algum transtorno mental nos 12 meses anteriores à entrevista. Desses, 30% eram considerados graves. Transtornos de ansiedade, humor, controle de impulsos e por consumo de substâncias foram os principais desarranjos verificados.

Para Flávio Villaça, os problemas nascem da desigualdade

A pesquisa também revelou quais são os grupos mais vulneráveis. Mulheres e homens de áreas com privação social apresentaram mais transtornos de humor, ansiedade e por uso de substâncias. Já aqueles com maior exposição ao ambiente urbano na maior parte da vida tiveram dificuldades em controlar seus impulsos.

Para Juan Carlos Aneiros Fernandez, pesquisador e secretário executivo do Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação em Cidades Saudáveis (Cepedoc) da Faculdade de Saúde Pública (FSP), a questão vai muito além da manifestação de doenças. “A saúde inclui qualidade de vida e projetos de felicidade. As pessoas não precisam ter o mesmo padrão de vida para se dizerem saudáveis; há subjetividades importantes”, esclarece.

Políticas públicas que alimentem essa saúde – coletiva e individual – afirma Fernandez, podem surgir de uma gestão descentralizada e integrada da cidade. A centralização tende a homogeneizar a forma de enfrentamento dos problemas, produzindo iniquidades. “Querendo atingir a todos, não se atinge as diferenças, e, muitas vezes, a gestão acaba por acentuá-las”, analisa.

Juan Carlos Aneiros Fernandez, do Centro de Estudos, Pesquisa e Documentação em Cidades Saudáveis (Cepedoc)

Esse processo, além de mais abrangente, também daria oportunidade para que a população se envolvesse nas questões públicas. Para o pesquisador, desse modo, o povo encontra campo para fazer reflexões sobre o espaço que habita, gerando saúde. Ele afirma: “O avanço das políticas em saúde é notório. Hoje temos legislação para a qualidade do ar, incentivo para a prática de atividades físicas e outra série de medidas que visam à melhoria da cidade. Mas a definição dessas políticas não deve nunca suprimir a participação do povo. Manter as pessoas pensando sobre a vida, isso é uma coisa que faz bem para a saúde”.

Outro ponto importante é a integração entre os serviços. “Todas as políticas devem trabalhar juntas. A ideia da política pública saudável é a ideia da saúde em todas as políticas públicas”, explica. De acordo com Fernandez, uma cidade saudável é aquela que apresenta atores empenhados em promover qualidade de vida. “O movimento pode começar por iniciativa do setor da saúde, do prefeito ou da própria comunidade, quando ela se junta e começa a demandar da administração um compromisso”, esclarece.

 

Resiliência

 

Elko Perissinotti compartilha opinião semelhante à de Fernandez. “Qualidade de vida envolve a contínua busca de felicidade, liberdade e independência. Trata-se de permanecermos seres desejantes, eternamente desejantes”, afirma.

Para Perissinotti, construímos um mundo inabitável, mas temos a obrigação de buscar qualidade de vida

Como, então, discutir parâmetros para qualidade de vida em grandes cidades? Para Perissinotti, o papel das políticas públicas é fundamental, mas não se deve esquecer do aprendizado sobre a própria natureza humana. “Desenvolver nossas potencialidades de resiliência constitui um percurso de enfrentamento de nossas relações com os outros”, opina. Para a psiquiatria, resiliência é a capacidade de enfrentamento com maturidade das adversidades da vida cotidiana com o menor índice de danos físicos e emocionais para si e para outros.

Um passo importante para o desenvolvimento dessa habilidade é o de acabarmos com bordões como “não tenho tempo” ou “tempo é dinheiro”. Os desejos não devem ser censurados, mas é preciso organizar-se e planejar-se com os pés bem plantados no chão. O psiquiatra também aconselha: “Pratique atividades físicas. Além dos benefícios ao corpo, os exercícios são a melhor vitamina para o cérebro. Se puder, tenha um animalzinho de estimação, pois ele estará lhe lembrando sempre sobre vínculos afetivos”.

Tenha tempo livre. Submeta-se a sessões de shiatsu, acupuntura, tai-chi-chuan. Pare de brigar com o mundo; na verdade você está brigando consigo próprio. Respeite e exija respeito no trânsito, no trabalho e até no lazer. Perissinotti resume: “Ética, idoneidade, tolerância e respeito são germinados na infância e têm relação direta com felicidade, independência e liberdade. Não perca essas virtudes.”

Saiba votar nas eleições. Afaste-se da solidão, um dos mais graves males do mundo moderno, formando um pequeno grupo de amigos leais e de frequente convivência. Minta o menos possível e seja menos impostor. Cultive suas boas crenças, mas esteja alerta, pois todas têm prazo de validade. Não evite os seus lutos. “Não recue em seus desejos e lute o bom combate na difícil busca de qualidade de vida para seus queridos”, conclui.

Para o psiquiatra, é questionável se podemos ter uma vida de boa qualidade no mundo “absolutamente inabitável que construímos”. Mas, apesar de reconhecer a dificuldade da tarefa, Perissinotti não descarta a importância das tentativas. “Qualidade de vida é ainda um conceito fugaz, volátil e enganoso, mas temos a obrigação de participar de uma cruzada em busca de sua concretização”, afirma.

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