Cinema

Os livres cavalos de Betty Leirner

Voz Interior

Mostra com filmes inéditos, exibida na Cinemateca e no Goethe-Institut São Paulo, recupera a trajetória da artista brasileira

Por Isadora Martins

Um grupo de cavalos livres se movimentando em diversas direções. Eis a imagem escolhida pela artista Betty Leirner para representar a mostra que recupera sua obra audiovisual e ocupa as salas da Cinemateca Brasileira e do Goethe-Institut São Paulo a partir desta quinta, 30, até o dia 8 de outubro, em duas sessões diárias. Ao todo, são 41 filmes produzidos por Betty em diversos países – como Alemanha, França, Japão, Portugal, além daqueles rodados em terras nacionais –, restaurados especialmente para a ocasião pela produtora Espaço Líquido. Com curadoria da própria autora, que há dez anos não expunha uma individual no País, a retrospectiva traz obras nunca antes vistas pelo público brasileiro.

Formada em Cinema pela Universidade de São Paulo em 1981, desde o início de sua trajetória a artista desafia os perímetros entre as diferentes linguagens artísticas, naquilo que o professor Arlindo Machado, membro do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, chamou de franja de fronteiras. “Não se trata apenas de uma fusão de meios e artes, pois a obra audiovisual de Leirner se processa nas intersecções entre os mesmos: ela é concebida com sensibilidade sintética de um fotógrafo, um poeta ou um pintor”, escreve no libreto a ser entregue para os visitantes da mostra.

Betty se lançou à criação cinematográfica dos idos 90, realizando ensaios, portraits, fotofilmes, audiofilmes e videopoemas. Apesar de nascida em São Paulo, vive na Europa desde os anos 80, e já expôs em museus e instituições como a Casa das Culturas do Mundo em Berlim, o Fórum Ludwig de Arte Internacional, de Aachen, o Museu do Cinema, em Düsseldorf, todos na Alemanha; Tate Modern, em Londres; Museu de Arte Contemporânea, Museu de Arte de São Paulo e Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. O projeto atual foi contemplado pelo edital Conexão Artes Visuais, promovido pelo Ministério da Cultura e pela Funarte com patrocínio da Petrobras. Além da projeção de filmes, acontece no dia 2, na Cinemateca, um debate com a presença da artista, do pesquisador Arlindo Machado, do cineasta Joel Pizzini e de Lucila Meirelles, pioneira da videoarte no Brasil.


Julie Wiedergeboren interpreta o Sempre no filme Märchen

No início, o verbo – Sujeito, objeto, linguagem e pensamento. A mão da artista escreve e apaga tais palavras numa janela de vidro, constituindo frases que se misturam. Em inglês e francês, subject ou sujet designam ao mesmo tempo o que em português chamamos de sujeito e objeto. Num processo simultâneo de construção e desconstrução, o poema-visual Sujeitobjeto (2007), realizado em parceria com Florian Kutzli, brinca com a imprecisão das línguas humanas.

Essa relação com a palavra é cerne no estilo de Betty. “Considero a palavra como uma das minhas musas principais. Através do sistema da palavra eu tenho a possibilidade de sintetizar aquilo que vejo e aquilo que sou”, afirma.

Em Chiffren und schriften (Cifras e caracteres, 1997), a artista estabelece o paralelo e o paradoxo entre números e letras. “Um dia perguntei à minha amiga Elizabeth Walther qual era a diferença fundamental entre esses dois signos”, explica. A resposta foi o que inspirou o filme: “algarismos são substituíveis, caracteres, traduzíveis”.

A questão da alteridade, aliás, é intrínseca à obra de Leirner – perpassa o universo dos símbolos linguísticos e atinge viés políticos como em Ebisu (O estrangeiro, 1999), no qual um grupo de manifestantes faz denúncias e reivindicações à porta da casa de seus patrões; e temas mais abstratos como em Märchen (Conto, 1996), a história de amor entre o Sempre (interpretado por Julie Osterhage) e o Nunca (Florian Kutzli).

De tom lacônico, o filme trata da delicadeza e antítese de tal relacionamento: “Nunca deu à Sempre Amor/ Sempre deu à Nunca Cada/ Nunca deu à Sempre Nada/ Entretanto Sempre falou Jamais”, escreve a autora na obra. “A alteridade é inerente, pois só nos reconhecemos na diferença. Partimos do todo, nos tornamos dessemelhantes e trabalhamos durante a vida na busca pela semelhança, pelo entendimento de uma linguagem comum”, filosofa. A temática da inviabilidade e profundidade da comunicação entre duas pessoas ainda aparece em Lied (Canto, 1996).

Gaijin, eu? – Outra vertente da exibição que ocorre na Cinemateca e no Goethe Institut são as obras sobre o Japão. Betty foi pela primeira vez ao país em 99, como poeta alemã para participar de uma exposição de textos visuais no Museu Tanka e Haiku, da cidade de Kitakami. “Viajei muito de bicicleta e trem e fui dar em paragens nas quais as pessoas nunca haviam visto um gaijin, ou seja, um não japonês”, conta. Mas a paixão de Betty Leirner pelo Japão foi tão forte, que a artista logo “esqueceu que não era japonesa”.

“O planeta Japão”, como denomina a artista, é assunto de vários de seus curtas – todos inéditos no Brasil – tais como Hiroshima station 1 e Hiroshima station 2 (ambos de 1999), que tematizam a beleza masculina, Text 98 (1999), no qual os ensinamentos e as moedas se misturam aos pés do Buda de Kamakura, e Japanese for beginners (1998), que conta a história do Urushima Tarô, lenda japonesa sobre um pobre pescador que foi, inclusive,  tema de uma propaganda da Varig em 1968.

Se Betty se sente japonesa por dentro, inegável, porém, é sua raiz brasileira. A terra natal é tema de mostra especial – Brasil Incógnito – com sete filmes que transitam entre os distintos olhares e vozes do País, dos quais se destaca aquele que cedeu a imagem dos cavalos para o cartaz. Intitulado Voz Interior, o filme homenageia o músico Elomar, o pintor Antonio Dias e o poeta Manoel de Barros com deslumbrantes imagens do Pantanal, onde foi filmado em 1997.

“Uma vez li que os cavalos são nosso pensamento e nós somos os cavaleiros”, conta Betty. A característica de convergência entre modos de expressão, técnicas e linguagens dificulta a conceituação de seu trabalho. “Bem cedo, as pessoas me perguntavam como deveriam me chamar: artista, poeta, cineasta. Não sei dizer. Parece que as pessoas precisam definir uma nomenclatura para poder compreender aquilo que estão denominando”, reflete ela. O pensamento de Betty é livre como a imagem de seus cavalos. Daí que, para a autora, somente eles traduziriam o caráter de ambiguidade essencial de sua(s) arte(s): “De todas as imagens que já produzi, a dos cavalos é a única que consegue representar a pluralidade desse projeto”, finaliza.

A retrospectiva Betty Leirner acontece de 30 de setembro a 2 de outubro, às 20h, na Cinemateca Brasileira (lgo. Senador Raul Cardoso, 207, tel. 3512-6111, ramal 215), e de 5 a 8 de outubro, às 19h, no Goethe Institut (r. Lisboa, 974, tel. 3296-7000). A programação completa pode ser acessada nos respectivos sites: www.cinemateca.org.br e www.goethe.de/saopaulo. Grátis.

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