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Na teia das histórias

Comportamento

Desde tempos remotos a ficção se apresenta como uma vela que ilumina o mundo, nos ajudando a dar sentido à vida e a lidar com as emoções

Por Maria Clara Matos

Cada sociedade apresenta seu repertório de narrativas e a necessidade de contá-las. Constrói-se por meio de suas fábulas, mitos e formas de expressão que possam dar significado a sua existência. Enquanto essa civilização vive, ela conta, e depois o que se sabe delas são essas histórias que perduram no imaginário coletivo. Nesse contexto, surgem os contos populares e deles a própria literatura infantil, que apresenta grande valor no desenvolvimento psíquico das pessoas e revelam em suas entrelinhas valores de uma época, bem como sentimentos e ações que podem satisfazer a inquietação humana por mais que os séculos passem.

Maria Thereza Costa de Souza

Maria Thereza Costa de Souza

A História da literatura aponta que a primeira coletânea de contos infantis foi publicado no século XVII, na França. Em os Contos da Mãe Gansa (1697) Charles Perrault reúne oito histórias recolhidas da memória do povo, entre eles A Bela Adormecida no Bosque, Chapeuzinho Vermelho e o Gato de Botas. Na mesma época, La Fontaine também dedicou-se às historietas populares; já no século XVII a literatura infantil se expandiu pela Europa com os irmãos Grimm e no século XIX, Hans Christian Andersen coroa o acervo infantil com títulos como O Patinho Feio e João e Maria.

Maria Thereza de Souza, professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da USP, chama a atenção para o fato de que os contos de fadas surgiram como uma tradição para adultos e posteriormente foram se inserindo no universo infantil. Além disso, muito dessa literatura ganhou, ao longo dos tempos, variações que são atribuídas aos valores das culturas que se apropriam das histórias e acabam por adaptá-las. Baseada em suas pesquisas, a professora diz ter descoberto cerca de 40 versões para o conto da Chapeuzinho Vermelho. “Elas variam desde o lobo não ter comido ninguém; a Vovó e a Chapeuzinho estarem escondidas no guarda-roupa, até o caçador que surge para salvar a situação”, declara.

Patrícia Pinna

Patrícia Pinna

Todos esses contos também trazem perspectivas universais. Por meio de símbolos e alegorias fantásticas revelam em suas entrelinhas ensinamentos que têm correspondência na realidade. Para Patrícia Pinna, psicóloga e pós-doutora em Mitologia Criativa e Arteterapia pela Faculdade de Educação, “os contos ensinam a viver”, uma vez que ajudam as pessoas a encontrarem sentido para o que cada uma vive, além de propor caminhos possíveis para se lidar com as questões do cotidiano.

À semelhança da teia da aranha, todas as histórias se entrelaçam – as individuais e as coletivas. A idéia do fio estaria ligada tanto às nossas relações quanto às histórias de vida, porque ele é o elo de aproximação entre passado, presente e futuro. A história de cada indivíduo vai dando notícia do caminho que cada um vai percorrendo ao longo da vida. E essa teia está ao mesmo tempo entrelaçada a uma história coletiva e num termo mais geral da humanidade.

A psicóloga aponta que as narrativas também têm o poder de ajudar as pessoas a se distanciarem de sua própria história de vida – assim como a aranha em relação à sua teia – e poder olhar para ela de uma maneira mais ampla e autocrítica. A expressão “era uma vez” nos dá conta dessa característica da narrativa, ou seja, desloca os acontecimentos para um outro momento e talvez em um outro local onde os animais falam, bruxas existem e princesas dormem por muitos e muitos anos.

José Nicolau Gregorin Filho

José Nicolau Gregorin Filho

Nesse sentido, José Nicolau Gregorin Filho, professor de Literatura infantil da FFLCH, destaca a importância dos modelos de construir o texto: “Assim como ‘era uma vez’, a expressão ‘e viveram felizes para sempre’ é importante não só porque príncipe e princesa se casaram, por exemplo, mas porque é o retorno a uma estabilidade que foi rompida”. Gregorin também chama a atenção para o fato de que o que está por trás da história não é a necessariamente que o casal viveu muito feliz e nunca se separou, mas sim que o reino, o lugar e os personagens recuperaram a estabilidade, assim como ocorre com a vida em seus problemas e soluções.

Segundo Freud, “a obra literária, assim como o devaneio, é uma continuação ou substituto do que foi o brincar infantil”. É como se a criança, por meio das narrativas infantis, obtivesse partes de um quebra cabeça antecipando momentos que poderá viver, assim como reconstruir situações do passado. Apropriando-se da fantasia, os pequenos têm a possibilidade de compreender o mundo e enfrentar melhor seus medos.

Citando a obra de Bruno Bettelheim, em especial A Psicanálise dos contos de fada, Thereza destaca que “deixar de ser criança e crescer não é um processo que é vivido apenas como um mar de rosas”. Nesse sentido, contos apresentam os problemas e os desafios do próprio crescimento, como estar diante de alguém mais poderoso e se sentir fraco, ser abandonado e ficar sozinho ou ficar angustiado com a perda de uma pessoa ou um papel social.

Maria Letícia Nascimento

Maria Letícia Nascimento

Há tempos o valor pedagógico da literatura é reconhecido e os professores, incentivados a utilizá-lo como recurso didático, tal o reconhecimento de que nosso cérebro está acostumado a pensar por meio das histórias. No entanto, Maria Letícia Nascimento, pedagoga e professora da Faculdade de Educação, critica o uso dos livros como meio para se chegar a metas determinadas.

Segundo a especialista, a literatura em si desencadeia uma série de processos de ordem psicológica, sociológica, antropológica e didático-pedagógica, mas ressalta: “Ela não precisa ser usada como recurso para se chegar a algum lugar. “Nós professores não somos capazes de prever quantas relações as crianças estão criando a partir de um gênero literário. Elas vão muito além das nossas expectativas.”

Gregorin pensando na mesma direção do que a pedagoga afirma – comenta que muito do preconceito que ainda se tem da literatura infantil advém de sua utilização no sentido de dar um modelo preestabelecido à criança. Maria Letícia, tendo como suporte suas pesquisas, vai mais longe e observa: “O problema da escola é que ela escolariza. Literatura boa é aquela que a gente ouve, troca, não a que é escolarizada”.

A professora não diminui o papel da escola e a descreve como ambiente essencial em que as crianças devem ser apresentadas aos livros, bem como receber a orientação dos adultos. “O professor pode contar um pouquinho da história nas aulas, isso nós fazemos mesmo. O problema é para cada livro contado a criança ter necessariamente uma atividade para fazer. Ela perde muitas vezes o prazer de ouvir a história, porque sabe que vai ter que desenhá-la depois, por exemplo. Pode ser muito gostoso para uns como pode não ser para outros.”

Ao contrário do que se imaginou um dia, que as crianças pequenas só absorviam os ensinamentos e somente a partir do sete anos de idade começavam a pensar, Maria Letícia ressalta que estudos da sociologia da infância e da psicologia do desenvolvimento entendem que a criança interage, lida com as informações à sua maneira. “Nós, adultos, temos por hábito pensarmos em uma coisa e depois falarmos sobre. As crianças pensam de uma maneira diferente, pensam brincando, pensam agindo na relação com os outros.”

Maria Thereza, que se baseia nos estudos de Jean Piaget e trabalha com interpretações das histórias, comenta que cada criança apreende cada aspecto da narrativa dependendo de sua condição psicológica, que varia com a idade. No conto da Cinderela, por exemplo, crianças de cinco anos, dominadas pela imaginação, ficam atentas a questões mais materiais como o cabelo, cor de olhos, mesmo que essas características não tenham sido explicitadas no enredo. Já crianças mais velhas ficam interessadas na rivalidade com a madrasta enquanto uma jovem de 15 anos vai focar na relação com o príncipe.

Munidas da fantasia proporcionada pelos livros, os pequenos têm suas preferências pelo tipo de história, de personagem e também interferem nos rumos da narrativa transformando-as a seu gosto, elaborando e resolvendo dúvidas e pendências que afloram em seu imaginário.

Saiba mais sobre a literatura infantil produzida atualmente no texto As histórias de ontem no mundo de hoje.

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