estresse no trânsito

 

 
por
Júlia Tavares


ra uma vez um casal muito feliz que tinha três lindas filhas. À noite, a mamãe não estava por perto para dar boa-noite nem para contar histórias porque trabalhava até tarde. Quem ficava em casa era o pai,mas ele pensava que contar história era algo que só acontecia nos filmes.
Até que um belo dia a mãe trouxe para casa uma coleção de livrinhos com contos de fadas infantis. A filha mais nova, de três anos, logo se apaixonou pelas histórias e exigiu que o pai lhe contasse uma delas todas as noites. Seu grande entusiasmo logo contagiou a família inteira. E o pai virou um grande contador de histórias.
Essa família existe, e a história também é real: o pai da esperta garota de três anos é Wanderley dos Santos, vigia do Museu de Zoologia da USP.

"De seis meses para cá, conto histórias quase todo dia. É um desafio, porque nunca foi um hábito.

Mas vou contando, entrando na história e, querendo ou não, acabo interpretando o personagem", diz ele, que já quase decorou aventuras como as de Alladin e a Lâmpada Maravilhosa, Ali Babá, Cinderela, Branca de Neve e os Sete Anões.

foto:Arquivo pessoal

Pai Wanderley
foto:Arquivo pessoal
Alany Ohara e Bárbara Kairyne, filhas de Wanderley

Para Regina Machado, professora da ECA e estudiosa das histórias de tradição oral, contar histórias é, acima de tudo, um ato amoroso e uma nova forma de brincar e propiciar o encontro entre pais e filhos. "Qualquer história contada de um certo lugar, que eu chamo de lugar do coração, tem um efeito bom. O que as crianças mais querem ouvir é a voz do pai e da mãe de um jeito diferente do que estão acostumadas a ouvir todo dia. Saem ganhando pai e filho", destaca Regina, também autora de cinco livros na área.

Quem soube bem desfrutar dos benefícios desse encontro especial é Heloíde Araújo Carneiro, chefe da sessão de alunos da Faculdade de Direito. Ela conta histórias para o filho mais velho desde que nasceu. "Eu cantava e inventava músicas, misturava contos de fadas diferentes e até criei um príncipe das Abóboras, que era sempre o Tiago. Até os três anos ele se achava mesmo o príncipe das Abóboras!", recorda a mãe coruja, que deve a boa relação que tem com o filho, já com 15 anos, a esse tipo de contato. "Hoje somos muito unidos e ele é um adolescente tranqüilo", comemora. foto:Arquivo pessoal

Tiago e mãe Heloide

 

A simbologia dos contos

Por muitos anos relacionado à vida no interior, o hábito de contar histórias parecia ter desaparecido na sociedade moderna. Mas, ao contrário do que muitos imaginam, a chegada da televisão nos lares brasileiros, principalmente a partir da década de 60, não foi o único motivo para o esvaziamento desse costume milenar. "A TV é apenas um dos fatores. Existe uma desagregação muito profunda dos valores humanos, dos costumes, e, principalmente, da idéia do que representa a família, que é de reunião", diz Regina.Para a professora,"os valores reais e encontros verdadeiros foram substituídos por coisas compradas e visões foto:Cecília Bastos

Regina Machado
totalmente estereotipadas do que é isso. Por essa razão a história é tão importante: ela traz de volta a união entre as pessoas".

Ao contrário de Regina, que participa de um grupo de contadores de histórias há quatro anos, Tânia Machado, psicóloga do Laboratório de Estudos da Personalidade do Instituto de Psicologia, prefere ouvir. Na infância, as histórias contadas pela mãe eram tão marcantes que criou uma fada só para ela e, anos depois, decidiu fazer o mestrado sobre o impacto dos contos de fadas na educação das crianças. "Os contos trazem um modelo completo e uma proposta de desenvolvimento humano", descobriu.

Tânia, que estudou os símbolos presentes nos contos, garante que eles carregam uma sabedoria ancestral e arrisca dizer que crianças que têm contato com eles desenvolvem mais a imaginação, a criatividade e a capacidade de discernimento e crítica.

"O herói passa por várias coisas até que ele se torna rei, por exemplo. Há um percurso, um caminho, ele precisa aprender uma porção de coisas para se tornar rei. São metáforas, por meio das quais se aprende alguma coisa sobre si mesmo"

Regina lembra que uma das simbologias mais fortes é a "trajetória do herói", ou "trajetória de desenvolvimento humano". "O herói passa por várias coisas até que ele se torna rei, por exemplo. Há um percurso, um caminho, ele precisa aprender uma porção de coisas para se tornar rei. São metáforas, por meio das quais se aprende alguma coisa sobre si mesmo", ressalta a professora, lembrando que uma dessas metáforas está no próprio nome "realizar", que remete à clássica estrutura do príncipe que vira rei e, por isso, se "realiza": alcança sua transformação e fica no centro da própria vida.

Afinal, existe receita para contar uma boa história? Elas devem ser interpretadas, lidas ou inventadas? Devem ser histórias reais? Para Regina, é melhor esquecer essas preocupações. "Ler ou contar, tanto faz, desde que seja de uma forma viva. É preciso perder o medo: todo mundo pode contar uma história", garante, lembrando que somente experimentando e se entregando que pais e filhos podem se encontrar no mundo rico e mágico da imaginação.

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DICAS DE REGINA MACHADO PARA ENCANTAR OS PEQUENOS COM A ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS

- Leia e conheça a história que você vai contar. Ter curiosidade é essencial
- Enquanto conta, procure ir vivendo a história, deixe-se guiar por ela
- Conte para si mesmo. Não o faça por obrigação, esqueça a culpa
- Observe a reação da platéia
- Aproveite objetos inusitados e divertidos da casa, como panos e lenços, para dar mais possibilidades à história


livros


Últimos livros de Regina Machado


Acordais- fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias

Regina Machado
Ilustrações de Luiz Monforte
Editora DCL
20 páginas
R$ 29


Este é o primeiro livro em que a autora elucida os pressupostos teóricos e práticos da função do contador de histórias. Indicado para professores e público em geral.
O violino cigano e outros contos de mulheres sábias
Regina Machado
Ilustrações de Joubert
Cia. das Letras
136 páginas
R$ 25

O livro é uma coletânea de histórias de tradição oral com protagonistas femininas, originadas de diversos povos e países. Diferentemente dos contos tradicionais mais comuns, em que as mulheres são delicadas, frágeis, e normalmente dependem de um homem para serem salvas, as protagonistas dessas 16 histórias são verdadeiras heroínas.
Ainda sobre o tema dos contos de fadas e de tradição oral, confira os seguintes títulos selecionados pela Revista Espaço Aberto na editoria de resenhas infantis:
- Histórias à brasileira, de Ana Maria Machado
- Nove novos contos de fadas e princesas, de Didier Lévy
- Mentiras... e mentiras, de Tatiana Belinky