Emanuel Silveira Barreto

 

 
por
Marco Jorges


Na escola da vida
foto:Cecília Bastos



comportamento
Pessoas desaparecidas

 
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DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO NORTE À AMAZÔNIA, AS MAIORES AULAS DE MANÉ FORAM SUAS EXPERIÊNCIAS VIVIDAS


  Uma estreita porta escondida entre tábuas de madeira e entulhos atrás do prédio da Antiga Reitoria revela o ambiente de trabalho de Emanuel Silveira Barreto, ou simplesmente Mané. Ao entrar, tem-se uma pequena idéia do ofício desse funcionário do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR) da ECA. Mesas, bancadas e prateleiras cobertas por serragem de madeira estão espalhadas por toda a sala, sustentando martelos, parafusos, pedaços de madeira, chapas de ferro, serrotes, latas de solvente ou qualquer outro equipamento que possa ser útil para alguma “emergência” num set de filmagem.

foto:Cecília Bastos
Apesar de seu holerite classificá-lo como técnico em maquinaria e elétrica, Mané é muito mais do que isso. Ele é uma espécie de faz-tudo que se desdobra para solucionar os mais imprevisíveis problemas que podem aparecer durante uma gravação. Precisou de uma estrutura para sustentar a câmera?
O Mané faz. Precisou de um objeto de cena que não estava nos planos? O Mané cria. Quebrou uma lâmpada do sistema de iluminação? O Mané conserta.

Entre os alunos do CTR ele é conhecido por sua inventividade na hora de criar instrumentos que vão solucionar qualquer problema que surja na gravação, e pela sua presença constante na filmagem dos trabalhos curriculares. O conhecimento para realizar os mais variados serviços que aparecerem na sua frente não foi adquirido em nenhum curso ou escola, mas sim nas muitas experiências que viveu. “Eu trabalho de pedreiro, carpinteiro, pintor, funileiro... até hoje ainda não sei qual é a minha profissão”, conta. Essa vocação autodidata ele puxou do pai, que faleceu quando Mané tinha apenas sete anos de idade, mas que foi fundamental para sua formação. “Ele fazia de tudo, mas nunca teve escolaridade, sabia ler e escrever porque a família ensinou, mas nunca foi para a escola.”


Ele [meu pai] fazia de tudo, mas nunca teve escolaridade, sabia ler e escrever porque a família ensinou, mas nunca foi para a escola”


Aos 62 anos de idade, barba e cabelos brancos e um inseparável boné na cabeça, lembrar da morte do pai é trazer à tona o período em que Mané e sua família deixaram a longínqua cidade de Santa Cruz, no Rio Grande do Norte, em direção ao Estado de São Paulo. O penúltimo de 22 irmãos, Mané, e sua família enfrentaram semanas de estrada num caminhão de pau-de-arara até chegarem ao interior de São Paulo, onde foram trabalhar na lavoura do café. “A mudança pra São Paulo não foi tão difícil, mas deixar os amigos, a casa e a cidade onde morávamos me lembra a música A Triste Partida, de Luiz Gonzaga”, recorda Mané.

foto:Cecília Bastos

 

“O carro já corre No topo da serra/ Oiando pra terra/ Seu berço, seu lar/ Meu Deus, meu Deus/ Aquele nortista/ Partido de pena/ De longe acena/ Adeus meu lugar/ Ai, ai, ai, ai

Chegaram em São Paulo / Sem cobre quebrado/ E o pobre acanhado/ Procura um patrão/ Meu Deus, meu Deus/ Só vê cara estranha/ De estranha gente/ Tudo é diferente/ Do caro torrão/ Ai, ai, ai, ai”

A Triste Partida - Luiz Gonzaga/ Patativa do Assaré

 

O primeiro contato com o meio cultural veio no início da década de 60, na época em que foi operário da Pirelli, em Santo André. Era um período de intensa atividade política e cultural, e a União Nacional dos Estudantes (UNE) formou naquele sindicato um Centro Popular de Cultura (CPC) envolvido com o teatro. “A unidade era formada apenas por operários e que nunca tinham ido ao teatro, alguns até analfabetos. Ainda assim, o envolvimento foi tão grande que o grupo montou espetáculos surpreendentes”, lembra. O sonho de ser ator se desmanchou com o golpe de 64, quando os CPCs foram considerados subversivos e perseguidos pelo regime militar. “A direção e os membros do grupo de teatro foram perseguidos, nossa biblioteca foi queimada na porta do sindicato, jogada escada abaixo e os livros reunidos no meio da rua e queimados”, relata.

“A direção e os membros do grupo de teatro foram perseguidos, nossa biblioteca foi queimada na porta do sindicato, jogada escada abaixo e os livros reunidos no meio da rua e queimados”


Depois de trabalhar alguns anos na equipe técnica do Teatro Municipal de Santo André, o funcionário cansado do caos na cidade grande resolveu dar um rumo bem diferente à sua vida. Então o menino que saiu do Rio Grande do Norte num pau-de-arara, o rapaz que trabalhou nas lavouras de café de São Paulo e o jovem perseguido pela polícia na ditadura partiram, todos, rumo à selva amazônica, no norte do Mato Grosso. “Foi uma aventura pioneira fantástica na minha vida porque tive contato com uma floresta que não tinha idéia do que era, e até hoje acho que a maioria dos brasileiros não sabe o que é o Brasil”, diz. Lá, ausência de esgoto e energia elétrica, estradas precárias e malária faziam parte do cotidiano de Mané, sua mulher e seus três filhos.

A adaptação da vida na cidade para um sítio no meio do nada não foi fácil e logo a experiência foi encerrada para dar lugar às comodidades da vida urbana, posto médico e escola para as crianças. A viagem de volta à cidade de Santo André foi digna de um grand finale. As chuvas torrenciais daquele ano transformaram a estrada Cuiabá-Santarém num atoleiro que empacava carros e caminhões, e a família teve que sair montada no lombo dos búfalos.

foto:Cecília Bastos

De volta à cidade surgiu o primeiro contato com o cinema, ou melhor, a televisão, trabalhando numa produtora de comerciais. Mais um aprendizado para ele. “A diferença entre cinema e teatro é que no teatro você monta tudo para uma temporada, no cinema você constrói para desmontar dali a dez minutos”, explica Mané. Foi nessa época que surgiu a oportunidade de trabalhar na USP, 16 anos atrás, indicado pelo Sindcine (Sindicato dos Técnicos da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo). “Eles me disseram que eu tinha aptidão para trabalhar com os alunos porque era um sujeito muito legal, paciente e que sabia lidar com as pessoas”, conta Mané, que foi o primeiro funcionário contratado para a função de maquinaria e elétrica. Após mais de seis décadas de experiências intensas, ele não pensa em aposentadoria, quer continuar no seu trabalho, na sua escola.“Tudo que aprendi até hoje foi a vida quem me ensinou”, afirma Mané, certamente, um dos melhores alunos a turma.
   


 
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