Em meados da década de 70, crianças de todas as capitais do Brasil dirigiam-se quinzenalmente às bancas de jornal para gastar suas economias. Por incrível que pareça, elas não estavam atrás de álbuns de figurinhas ou histórias em quadrinhos, elas queriam mesmo era aprender ciência, embora a maioria delas não tivesse a menor idéia disso.

Foi nesse período que a Editora Abril publicou, durante dois anos, a coleção Os Cientistas, um encarte que trazia a biografia de um cientista e o material necessário para explicar suas teorias da maneira que a criança mais gosta: brincando. Sucesso editorial, – a primeira edição chegou a vender 200 mil exemplares, uma raridade na época – a publicação foi o primeiro contato de muitas crianças com ciência, crianças que mais tarde viriam a se tornar elas mesmas cientistas ou pesquisadoras.

foto:Cecília Bastos
Esse foi um dos meus trabalhos mais importantes. Naquele contexto de ditadura, a gente queria, além de ensinar ciência, mostrar que a ciência depende da capacidade de pensar livremente”

“Esse foi um dos meus trabalhos mais importantes. Naquele contexto de ditadura, a gente queria, além de ensinar ciência, mostrar que a ciência depende da capacidade de pensar livremente”, lembra Myriam Krasilchik, professora aposentada da Faculdade de Educação que até hoje encontra “fãs” da revista na academia. “Outro dia estava numa banca na Escola Paulista de Medicina e o mestrando me confessou que eu fui a responsável pela sua iniciação científica, porque ele brincava com os kits na sua infância, na Amazônia”, conta.

Apesar de uma trajetória de mais de quarenta anos na Faculdade de Educação, Myriam fez História Natural na USP, um curso que abrangia Biologia e Geologia. A intenção era se formar e dedicar-se à pesquisa, mas depois de graduada ela precisava trabalhar e acabou prestando concurso para professora secundária. “Fui dar aula em Piracicaba porque aquela era a minha terra e fiquei lá por quatro anos. Nesse período, decidi que o que eu queria mesmo era dar aula e fazer pesquisas nessa área”, recorda.

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“Outro dia estava numa banca na Escola Paulista de Medicina e o mestrando me confessou que eu fui a responsável pela sua iniciação científica, porque ele brincava com os kits na sua infância, na Amazônia”

Piracicabana e filha única, Myriam mudou-se para São Paulo ainda nova, aos quatro anos, quando seu pai faleceu e sua mãe, uma jovem de apenas 19 anos, resolveu voltar para a casa dos pais na capital com a criança a tiracolo. Apesar da distância, a menina ainda mantinha estreitos vínculos com a cidade natal, onde passava as férias. Na infância, Myriam corria atrás dos livros com a mesma ansiedade que as crianças, décadas depois, correriam atrás das bancas de jornal à procura dos kits. “Minha avó morava ao lado da biblioteca municipal de Piracicaba e eu ficava lá a tarde toda, lendo até acabar o livro”, conta a professora que, em São Paulo, era assídua freqüentadora da Biblioteca Mário de Andrade e que até hoje cultiva o hábito da leitura. Sem irmãos e apaixonada por livros, pode-se pensar que Myriam teve uma infância solitária. Ledo engano. De família grande, ela sempre esteve às voltas com primos e tios, um hábito que se mantém até hoje em sua casa, onde mora com a mãe e constantemente recebe familiares para visitas.

Em 1968 começou a dar aulas na Faculdade de Educação, onde ficaria até os dias de hoje e se tornaria uma professora respeitada pelos alunos e admirada pelos colegas. Prova disso foi a entrega do título de Professor Emérito outorgado em 2002. Aposentada compulsoriamente aos 70 anos, Myriam continua dando aulas. “Esse semestre eu tive 122 aplicações no curso de pós, mas infelizmente cabem apenas 98 alunos no auditório”, lamenta a professora num tom de “não há nada que eu possa fazer”, logo após dispensar educadamente uma aluna que ligou pedindo uma vaga no curso.

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Minha avó morava ao lado da biblioteca municipal de Piracicaba e eu ficava lá a tarde toda, lendo até acabar o livro”

Politicamente, Myriam fez história na USP ao romper com conceitos que perduravam na instituição. Por incrível que pareça, foi a primeira mulher a dirigir a Faculdade de Educação, uma unidade majoritariamente feminina, e mais tarde foi também a primeira vice-reitora da história da Universidade. Mesmo num ambiente acadêmico, onde se espera um pensamento igualitário e livre de preconceitos, Myriam foi obrigada a responder a perguntas que considerou descabidas. “As perguntas que me faziam questionavam se eu seria capaz de suportar momentos de crise ou numa greve. Se isso fosse uma pergunta comum para todos os candidatos, eu acharia normal, mas como foi específica para mim subentende-se uma certa desconfiança”, lamenta a professora que, no entanto, não permitiu que isso atrapalhasse seu trabalho ao lado do professor Flavio Fava de Moraes.

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“O professor Melfi me convidou para presidir a comissão central e nos pediu para responder uma pergunta: se nós achávamos que devia ser instalado um campus na zona leste”

Atualmente, Myriam se vê empolgada com um novo projeto para o ensino público, a USP Leste. “O professor Melfi me convidou para presidir a comissão central e nos pediu para responder uma pergunta: se nós achávamos que devia ser instalado um campus na zona leste”, conta a professora que, ao lado da sua comissão, não só respondeu que sim ao Magnífico, mas também propôs uma série de idéias no relatório. O estímulo a uma mentalidade de pesquisa, a ênfase na interdisciplinaridade, a criação de cursos diferentes dos já existentes e que tragam melhorias na qualidade de vida.

Outra medida que ela considera importante é o aumento da permeabilidade da comunidade na instituição, tarefa fácil para quem ao longo da trajetória acadêmica se acostumou a quebrar barreiras e, aos 73 anos, continua envolvida em projetos inovadores, como fez na década de 70 com Os Cientistas
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