Durante desfile da última edição do maior evento de moda no Brasil, o São Paulo Fashion Week, em janeiro deste ano, a modelo Yasmin Brunet mostra que a tatuagem entrou de vez para o catálogo da moda exibindo um intrigante desenho no pé: uma caveira de lacinho, acompanhada de três delicadas estrelas coloridas. Assim, pode parecer difícil acreditar que a tatuagem tenha sido relacionada à criminalidade até os anos 1970 e se popularizando apenas de cinco anos para cá, mas, apesar de tantos altos e baixos na história da civilização algo permanece igual: “O papel social da tatuagem é documental, equivale a um RG”, defende Rodrigo Toffolli, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas orientado pelo professor Ivan Lopes
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Tatuagem da modelo Yasmin Brunet: uma caveira de lacinho, acompanhada de três delicadas estrelas coloridas.

Professor e aluno investigaram a tatuagem como um recurso de linguagem, percebendo que o adorno serve para expressar intenções, transgredir regras, provocar, seduzir e identificar. Ou seja: por mais que o dono do desenho defenda o significado pessoal na sua escolha, ele está comunicando algo, ainda que de forma cifrada. “Muitas vezes esses significados são como uma gíria, nem todos entendem”, completa Ivan Lopes, lembrando que no mundo do crime as tatuagens precisam ser cifradas para marcar os estatutos e o tipo de crime cometido por quem passa pela cadeia. Quando caem no conhecimento público, surge um novo desenho para os mesmos significados.

O mundo do crime e a história da tatuagem criminal no Brasil foi o ponto de partida da pesquisa de Tofolli durante iniciação científica do curso de Letras. Ele reproduziu 400 imagens de tatuagens dos corpos de presos feitas entre 1920 e 1940, que estavam catalogadas no arquivo do Museu Penitenciário do Estado de São Paulo. Toffolli trabalhou com significados de desenhos já decodificados pelo diretor do museu, Esmael Martins da Silva, na tentativa de sistematizá-los. Foram encontradas duas grandes classificações: a tatuagem artística, com função estética, e a marginal, com significado prático de identificar grupos diferentes.

A tatuagem artística, com função estética, e a margina

O Museu Penitenciário, atualmente apenas disponível virtualmente, mostra que a imagem de Nossa Senhora Aparecida tatuada no peito ou nas costas simboliza proteção e esperança. Já em tamanho grande, acima da metade e bem ao centro das costas, a mesma imagem serviu para identificar tanto um preso violentado como um estuprador. “Fora da cadeia, na sociedade comum, muitos se tatuam sem ter informação. Mas não tem jeito, uma hora o jovem vai levar aquela linguagem para outros universos”, alerta Silva, que foi tatuador em sistema rudimentar nos anos 1970, na Praça da República (em São Paulo), e também ministra palestras sobre tatuagem em escolas públicas e particulares. Silva ressalta que um bom estúdio profissional, além de limpo e reconhecido, deve oferecer orientação sobre desenhos com estigmas conhecidos no “mundo do crime”. “A borboleta, quando no peito ou no braço, é símbolo de liberdade, mas em qualquer outra parte do corpo vira símbolo de homossexualidade”, exemplifica.

Tanto Silva como Toffolli concordam que o processo de desestigmatização da tatuagem seja recente. “Defendo que ela já existia no Brasil antes dele ser Brasil, por ser uma prática muito comum entre nossos índios”, observa Toffolli.

Até mesmo quem nunca sentiu o preconceito na pele percebe como a aceitação social da tatuagem aumentou. É o caso de Sibele Martins, auxiliar de odontologia no Centrinho de Bauru, que tem 31 anos e tatuou duas orquídeas de 5 cm nas costas, aos 18. “Sempre gostei e queria fazer, mas procurava algo delicado e feminino. Na época me preocupei em fazer num lugar que pudesse esconder, meu pai dizia que eu podia ter problemas no trabalho. Mas não era tanto moda como hoje”, diz ela, que planeja fazer o retoque das orquídeas este mês. “Vou aproveitar e tatuar uma rosa com espinho no pé e meu nome em letras japonesas no pescoço”, garante, dizendo que o nome na língua oriental foi o único significado que chegou a pesquisar na internet.

Até mesmo quem nunca sentiu o preconceito na pele percebe como a aceitação social da tatuagem aumentou


Já Maurício Alves, auxiliar acadêmico da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia, reconhece o sentido religioso dos seus desenhos: uma figura de Jesus Cristo e um sol radiante. “No meu caso, não quero chamar a atenção, amo as tatuagens que eu tenho, elas têm significado bíblico. Eu não gostava de igreja, mas tive uma série de acontecimentos que me marcaram, por isso fiz Jesus. O sol representa proteção de Deus: já tenho o Pai e o Filho, falta o Espírito Santo para completar o ciclo”, diz ele, que é católico e freqüentemente explica sua história para os curiosos de plantão.
Camilo Albuquerque Brás, antropólogo da Unicamp, percebeu que as contradições também estão presentes no discurso dos tatuadores profissionais e adeptos da modificação corporal ou body modification, técnica radical que utiliza piercings genitais e alargados, escarificações, implantes e suspensões. “Durante o trabalho de campo, cheguei a ouvir de meus interlocutores de pesquisa que a tatuagem é algo pessoal, individual. Diversas vezes as pessoas se negaram a afirmar um possível significado grupal nessas práticas. ‘É igual roupa’, uma garota me disse certa vez. Mas fica difícil não imaginar que cada ‘estilo’ desses não configure um ‘estilo’ de ser, atraindo um ‘público’ específico”, observa.

Brás concluiu que as regras e normatizações dentro da modificação corporal são inclusive necessárias para o processo em curso de conformação de um campo profissional nesse universo, com técnicas, saberes e hierarquias específicas. “Cada estilo é procurado por um público diferente. A old school, por exemplo, que é o estilo mais tradicional, seria alvo dos skinheads. Já a new school, que imprime um toque moderno aos desenhos, coloridos, brilhantes e que dão a sensação de movimento, seria muito procurada por skatistas”, diz.

"Teve uma época que as ruas da região do Lgo. São Francisco ficavam cheias de gente que terminava de tatuar e logo começava outra pessoa com a mesma agulha, era uma coisa de mundo cão"

Guaraciaba Juk

Se a questão da estética das tatuagens está bem aceita, o medo quanto à falta de higiene e assepsia dos estúdios continua. “Teve uma época que as ruas da região do Lgo. São Francisco ficavam cheias de gente que terminava de tatuar e logo começava outra pessoa com a mesma agulha, era uma coisa de mundo cão. Até tentei denunciar para a prefeitura, mas não mudou nada”, diz Guaraciaba Juk, bibliotecária da Faculdade de Direito, que ainda hoje acredita que faltam informações sobre as doenças que a mania pode causar.

A dermatologista Priscilla Krook, do Hospital das Clínicas, esclarece que há risco de desenvolvimento de quelóide, espécie de cicatriz grande. “O problema é que não há testes para saber quem tem predisposição ou não”, diz. Outro problema é o granuloma, alergia provocada pelo pigmento, especialmente os vermelhos. O tratamento moderno de remoção é feito a laser, e quanto mais colorida a tatoo, mais sessões e lasers diferentes são necessários. “Uma tatuagem média pode levar de 5 a 10 sessões para a remoção total. O processo é dolorido e o custo, caro”, diz ela, que cobra cerca de R$ 500 para cada sessão de 20 a 30 minutos.
Segundo Priscilla, no entanto, a maior parte de seus pacientes não procura o consultório por questões de saúde nem de preconceito. “Hoje tiram por enjôo ou porque cansaram do nome da namorada ou do namorado, ainda mais quando o desenho está muito aparente, na face ou nas mãos”, percebe Priscilla.