Mesmo que eu e você tenhamos preferência pelas férias, a volta ao cotidiano não precisa ser encarada como o fim da linha. Ao deixar esse tempo de descanso e lazer para trás, e voltar às atividades diárias, nosso organismo percebe tais modificações de comportamento e reage à nova vivência que está sendo estabelecida.

“Olhe para o meu relógio”, atenta Luiz Silveira Menna-Barreto, professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP: “Lá dentro, tem a engrenagem, responsável pelo controle de todas as funções do aparelho. Ela é como o relógio biológico (as células, glândulas e rede nervosa). Agora os
ponteiros: eles apenas expressam o que é determinado pela engrenagem. Isso é o ritmo biológico (o bocejo, a fome ou a vigília)”, compara. Na interpretação de Menna-Barreto, não há como negar uma vivência que incorpore os valores expressos pelo ritmo próprio somado às influências do meio que nos rodeia.

O próprio relógio interno mais as exigências ditadas pelo cotidiano. Na opinião do pesquisador Menna-Barreto, é assim que se determina o nosso ritmo.

A comunidade científica já realizou vários estudos a fim de desvendar os níveis de disposição das pessoas ao longo do dia e constatou que existem variações relevantes de acordo com os horários. Há quem esteja mais “ligado” pela manhã, dê preferência por ir dormir e se levantar mais cedo. Ao contrário dos matutinos, como são chamados esses sujeitos, existem os vespertinos, com atividades mais favoráveis pela tarde e noite. Também foi percebida a classe dos indiferentes, aqueles cujos hábitos se adequam facilmente a qualquer horário. No caso de um matutino ou de um vespertino exagerado, podem ser grandes as dificuldades em se habituar com períodos muito diferentes de sua preferência biológica.

Na Escola de Comunicações e Artes, Renata Cristina Prazeres Silva sentiu a alteração de seus turnos na biblioteca. “Passamos por uma mudança nos horários de trabalho e agora eu preciso acordar mais cedo. Normalmente eu vou dormir entre meia-noite e uma hora, porque estudo. Agora que acordo antes da sete, sair da cama me deixa com preguiça, e sinto falta do meu antigo sono”, conta.

Renata Cristina precisou mudar sua rotina e acordar mais cedo. “Isso alterou meu humor, mas é só na parte da manhã.”

Segundo o professor Menna-Barreto, somos responsáveis por uma grande autoviolência cotidiana, pois submetemos nosso organismo a condições impróprias e até além dos limites no que diz respeito ao sono, cansaço, stress e falta de lazer. “No ponto de vista de uma sociedade que se pauta pela produtividade, o sono ou o descanso é um tempo inútil, jogado fora. Nossa cultura diz que tempo é dinheiro. Até algumas décadas atrás, a medicina considerava o sono um período em que o cérebro é desligado. Hoje, sabe-se que o sono é essencial para desenvolver a memória, entre outras atividades”. Portanto deve ser incluído entre as ocupações diárias.

Para o cientista Albert Einstein, dormir era um enorme prazer: seu sono tinha em média 12 horas. Já outros grandes gênios como Leonardo da Vinci ficavam satisfeitos com apenas 4.

Nesse contexto em que vamos planejar os hábitos e a valorização do corpo em meio às ocupações diárias, vale ressaltar que a rotina oferece pontos positivos: “O dia-a-dia serve como uma âncora temporal ao recolher informações sobre as atividades diárias e auxiliar o nosso organismo a se preparar para as mesmas ações nas próximas oportunidades. Ela nos permite saber quando sentiremos fome ou quando o sono virá, e permite regular a liberação dos hormônios e outras funções fisiológicas”, explica Menna-Barreto. Entende-se que a importância desse mecanismo é garantir a possibilidade de nos organizarmos e distribuirmos os afazeres, respeitando períodos destinados ao lazer e ao trabalho. Uma vida sem repetições pode desregular o ritmo biológico. É o que acontece com quem troca o dia pela noite, tais como trabalhadores noturnos e freqüentadores assíduos de festas que só terminam pela manhã.

Plantão à noite, trabalho no final de semana, curso de pós-graduação e baladas: Luciana Ogawa já não almoça e tem dificuldades para pegar no sono: “Mas até que dá pra levar. Gosto do que faço.”

“Ah, meus horários até são normais. Só bagunçam quando faço plantão à noite”, diz a enfermeira do Hospital Universitário Luciana Ogawa. Sua jornada de trabalho é de seis horas diárias, mas no final de semana chega a turnos de doze. E além do trabalho, Luciana cursa pós-graduação em enfermagem obstetrícia: “Trabalhar no domingo já é mais difícil porque o esforço é dobrado, tive aula na véspera, saí para balada à noite e não pude dormir as nove horas que queria”.

Com os horários trocados, o organismo de Luciana se enrola para organizar as informações sobre seu dia-a-dia. O almoço já desapareceu da sua lista de refeições e não é raro ela precisar de uma hora inteira para pegar no sono depois que já se deitou. “Mas dá pra levar, gosto do que faço”, diz.

Cumprir metas e buscar conquistas é uma constante universal na sociedade de hoje. “Todo mundo quer sucesso. O que varia é o modo como cada sujeito interpreta o conceito de sucesso”, afirma a professora do Instituto de Psicologia Eda Terezinha. Além dessa interminável busca por realizações, as pressões vindas do ambiente, tais como as exigências do trabalho, o despertador tocando pela manhã ou o malabarismo com as finanças, também contribuem muito para sensibilizar as estruturas do corpo e mente. “Diante de muitos desafios e cobranças que vêm de fora, pode ser complicado retornar ao trabalho. Por isso nos sentimos tão bem nas férias: porque nos vemos aliviados das pressões diárias.”

E para lidar com os incômodos do cotidiano, as regras estabelecidas em nossa cultura prevêem que cada um procure se adequar aos locais que freqüenta e pessoas com quem convive. “As rotinas são estabelecidas e nos acostumamos a viver com elas. De acordo com os conceitos individuais sobre tempo, trabalho e lazer, cada um irá entendê-las como boas ou ruins, prazerosas ou não”, explica Terezinha. “Assim, a dificuldade de entrar na rotina é a dificuldade em nos adaptarmos ao ambiente que veio de fora e nos foi determinado”, conclui.

Segundo a professora Eda Terezinha, as cobranças do ambiente e a ânsia individual por sucesso podem ser difíceis de encarar: “As pressões são também reflexo de uma sociedade narcísica, que dá muito valor às próprias conquistas”, diz. Então vá com calma.

Marcelo Izaías da Penha chega tarde em casa. Ao anoitecer ele assume o posto de vigia na Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis e se mantém no trabalho até as 23h. “Pego trânsito para ir trabalhar e só entro em casa depois da meia-noite. Preferiria mesmo fazer o turno da manhã. Eu teria de madrugar, mas no final do expediente, ainda haveria uma boa parte do dia.” Mas apesar do horário, que considera inconveniente, ele se esforça para manter os hábitos no lugar. “Para esse período, eu precisei me educar: janto na Universidade e não acordo muito tarde no dia seguinte.” Assim, Penha consegue manter o sono e o apetite em ordem.

Horários incômodos para a jornada de trabalho: trânsito na ida e altas horas na volta. O vigia Marcelo da Penha já criou sua rotina para evitar transtornos.

Dizer, por exemplo, que existe um número exato de horas de sono para que possamos “funcionar” bem no dia seguinte é uma afirmação equivocada, conforme afirma o professor Menna-Barreto “A recomendação é dar importância ao sono e procurar dormir o quanto nos faz bem”, explica ao destacar o respeito aos ritmos individuais. Resta para o cotidiano e suas diferenças entre os ritmos pessoais, o grande desafio de manter a saúde em boas condições, ao mesmo tempo em que as obrigações e metas como trabalho, casa, estudos e relacionamentos sejam cumpridas.

B O X

Mais artigos sobre o sono, no site www.crono.icb.usp.br

“O nosso amor é tão bom
O horário é que nunca combina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Quando pego o ponto
Ela termina

Ou: quando eu abro o guichê
Ela abaixa a cortina
Eu sou funcionário
Ela é dançarina
Abro o meu armário
Salta a serpentina”

Trecho de Ela é dançarina, de Chico Buarque. Numa sociedade que se mantém ativa a todo momento, os horários pessoais não combinam com a vontade própria.