Diante da nossa seleção, o que a exigente torcida brasileira sempre espera é a conquista de qualquer campeonato. Nas mesas de bar ou no escritório, os torcedores já fizeram a própria escalação do time que deve entrar em campo na Alemanha. Nesse momento, 180 milhões de pessoas transformam-se, de imediato, em técnicos. “Todo mundo acha que entende de futebol. Por isso vemos tanta gente falando besteira”, afirma Antônio Carlos Simões, professor da EEFE (Escola de Educação Física e Esporte) e estudioso da figura do líder nos esportes. De acordo com Simões, o treinador tem dificuldades para trabalhar no Brasil porque se vê limitado por quem não conhece profundamente o futebol e está ligado a outros interesses.

foto: cecília bastos
“O treinador esbarra em várias lideranças nos próprios departamentos do clube e em pessoas influentes de fora. Isso tudo gera instabilidade para o seu cargo”, afirma o professor Simões

Ele explica que a instabilidade do técnico ao exercer sua profissão está relacionada à falta de estrutura oferecida pelos dirigentes dos clubes, que se rendem ao imediatismo de bons resultados exigidos pela opinião pública. Em caso de derrotas, o técnico é impedido de permanecer na equipe o tempo suficiente para fazer seu trabalho: elaboração de um diagnóstico dos problemas atuais da equipe e o planejamento necessário para os jogos seguintes. Forçados a mostrar empenho para torcida e imprensa, os dirigentes trocam o treinador. “As forças limitantes da atuação do técnico são muito maiores que a força deste em modificar o senso comum”, explica Simões. “Trocas a toda hora só atrapalham o andamento da equipe. De vez em quando, a alteração feita pelos dirigentes surge efeito e nascem técnicos ‘especialistas' em tirar time do rebaixamento ou da segunda divisão. Tornam-se os ‘pés de coelho'. Essa crença é um mal crônico enraizado na cultura brasileira, e só vai mudar quando os dirigentes se profissionalizarem.”

foto: cecília bastos
professor Cortez reclama: “No Brasil, o técnico não tem tempo para planejar a equipe. Os dirigentes o substituem antes”

O professor de futebol da EEFE, José Alberto Aguilar Cortez, condena: “Os dirigentes se portam muito mal, porque julgam necessário se evidenciar e acabam cedendo às pressões externas. Isso não deixa o técnico trabalhar. Nos países europeus, os contratos são mantidos e o técnico permanece até o final. Aí sim ele pode colocar em prática seu plano de desenvolvimento do time”.

Além de interesses políticos dos famigerados cartolas, outro desafio é lidar com a opinião pública construída por jornalistas, locutores e comentaristas da mídia. “O que eles têm é apenas uma visão de fora”, lembra Evandro Villa Lemes, técnico da seleção USP – equipe formada por estudantes universitários. “Só o técnico conhece o ambiente do grupo e entende o significado de cada jogador para os companheiros. Isso pode alterar o planejamento do time, mas as razões não aparecem na imprensa.” O professor Simões entende que a imprensa precisa saber se posicionar: “O técnico conhece a fundo seus atletas, inclusive em questões pessoais. Os problemas internos eles não divulgam mesmo, e isso tem que ser respeitado pelos repórteres”.

Quase sempre afastada dos holofotes da mídia, desenvolve-se uma relação de confiança entre técnico e jogador, essencial para a equipe funcionar bem. “Caso contrário, ocorre o boicote. Nem sempre é intencional do jogador para desmerecer o técnico, mas acontece porque ele não confia nas ordens de seu comandante e age por conta própria”, completa Lemes.

Longe da esfera do time, a falta de liderança abala o prestígio do treinador e contribui para que haja mais pressão de fora. No exemplo do torcedor Alexandre Blumer Bezerra, funcionário do Instituto de Geociências, ele compara os profissionais pela sua capacidade de liderar: “Eu acho o Parreira capaz de dirigir o Brasil, mas prefiro o Felipão porque é melhor comandante. Sua voz se impõe à dos jogadores”. Ginaldo Ferreira, do Instituto de Física, usa o mesmo critério para avaliação: “Não confio no Parreira. Prefiro o Felipão porque ele é mais severo, mais exigente e não deixa de ser um paizão para o time. Já o Parreira me parece muito preso a outros interesses”, opina. Ferreira ainda valoriza a paixão nacional do brasileiro: “Os grandes entendidos de futebol somos nós mesmos, torcedores, pessoas comuns. Nós acompanhamos os jogos por pura paixão, não estamos ligados em outros interesses e politicagem”.

fotos: franscisco emolo
Os torcedores valorizam a liderança exercida pelo técnico: “Prefiro o Felipão, sua voz se impõe aos jogadores”, diz Blumer (esq.). “Ele não deixa de ser um paizão”, completa Ferreira.

O lado emocional do jogador é um dos fatores responsáveis pelo rendimento do time. O professor Cortez diz que, “em quaisquer modalidades esportivas, quatro pontos fazem a diferença: tática, técnica, físico e emocional”. Na sua opinião, o técnico deve participar de todas as etapas, mas “infelizmente se dedica muito a ler livros de auto-ajuda para resolver problemas pessoais dos atletas, quando isso é trabalho de um psicólogo que deveria participar da omissão técnica. O técnico precisa se especializar mais na técnica e tática”.

Como exemplo de formação modelo, Cortez lembra das escolas de treinadores existentes na Europa, onde o futebol atinge um nível bem maior de profissionalização através de interações acadêmicas. “Na Espanha, por exemplo, são comuns os congressos onde os técnicos, médicos esportivos e auxiliares participam com seus trabalhos para discussão. No Brasil, os treinadores não se sujeitam a esse questionamento, eles carregam muito estrelismo. Já imaginaram o Leão assistindo a uma palestra do Luxemburgo?”, brinca Cortez. “E se ele fosse, iriam dar risada no jornal.”

BOX


Segundo o professor Simões, para que um técnico possa entender o funcionamento de um time de futebol, ele precisa conhecer:

Antropologia – valores da própria cultura,
Sociologia – fenômenos interativos,
Psicologia – questões psíquicas escondidas,
Filosofia – sustentar e julgar idéias,

Além de se aprofundar na teoria e pratica da modalidade

No Brasil, não há escolas semelhantes e a formação dos treinadores se dá, na maioria das vezes, pelo seu envolvimento com o futebol ao longo da vida. Na Edusp, o estagiário Edson Cardozo da Cruz, aluno do 2º ano de Letras, acha que há atributos mais importantes do que a escola de técnicos: “Claro que uma graduação ajuda, mas o essencial mesmo é que ele saiba explorar as características dos jogadores e, na hora certa, coloque o famoso ‘coração na chuteira'”, diz. “A gente vê muitos técnicos competentes que aprenderam tudo na prática mesmo, sem estudos.”

Já o professor Antônio Carlos Simões diz que “se contam nos dedos os profissionais bem preparados. A maioria é ex-jogador e nem estudou nada do que precisava. A antiga Lei Zico ainda mencionava a participação das universidades para dar embasamento acadêmico aos técnicos, mas não foi nada concretizado. E a Lei Pelé, que está em vigor, não fala nada sobre isso.”

Na falta de condições ideais para formar treinadores, Simões entende que o sucesso de cada profissional depende da capacidade de perceber as condições humanas dos jogadores. “O ser humano tem vaidades, sofrimentos e é vulnerável às pressões. O técnico é um administrador de egos. O Parreira, por exemplo, tem o grande desafio de cuidar de vários egos, inclusive diante dos 180 milhões de palpiteiros que cobram o hexa.”